22.1.19

Green Book - O Guia


O road movie, como jornada de transformação, é um tipo de filme caro a Hollywood e ao público. Dificilmente seria o tipo de filme que esperaríamos vindo de Peter Farrelly (co-diretor de algumas das comédias mais grosseiras que já se viu, como Quem Vai Ficar com Mary? e Eu, Eu Mesmo e Irene). Menos fácil ainda seria prever que este filme fosse comedido, sensível e acabasse indicado a cinco Oscars, entre os quais, o de Melhor Filme.

A direção segura de Farrelly não foi reconhecida com uma indicação. Seria humanamente impossível, porém, não indicar seus dois ótimos protagonistas: Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Se tivesse que apostar, diria que Ali tem mais chances, já que, aparentemente, ninguém tira o Oscar de Ator Principal de Christian Bale, por seu papel em Vice.

Green Book - O Guia é um filme de temática racial baseado em uma história real, como Infiltrado no Klan. Em lugar da ironia e enfrentamento, porém, toma o caminho do humor e da emoção para retratar a amizade entre um pianista negro (Ali) e seu motorista branco (Mortensen).


Estamos na década de 60. Desempregado, o leão-de-chácara Tony Lip é convidado pelo pianista de jazz Doctor Don Shirley para servir como seu motorista e eventual guarda-costas, durante uma turnê por áreas onde a segregação racial era a regra. Ele próprio cheio de preconceitos, Tony inicialmente declina da oferta, mas sua situação financeira não é nada boa, e ele prefere afastar-se da vida de pequenos delitos que comete com outros amigos ítalo-americanos. Aceitando a proposta do artista, ele o conduz pelos estados do centro-sul americano, numa jornada que inclui dormir em pardieiros e encarar a violência racial, mas, também, permite àqueles homens que, inicialmente, se estranham tanto, conhecer e respeitar um ao outro.

Há uma agradável subversão de clichês no filme de Farrelly: o personagem inteligente, formal e travado é o negro, enquanto o descolado, desbocado e street wise é o branco. Gordo e comilão, Viggo Mortensen é impagável como Tony Lip, mas Mahershala Ali toma o filme pra si a cada aparição. Não apenas pela imponência e elegância, mas pela maior profundidade psicológica de seu personagem. O filme se equilibra muito bem entre o aprendizado de Lip sobre pessoas que intimamente despreza e o de Shirley sobre aquele homem sem qualquer refinamento, mas, principalmente, sobre si mesmo. É por isso que seu concerto final é tão simbolicamente poderoso.

Ainda que saia de mãos abanando no próximo dia 24 de fevereiro, Green Book - O Guia tem minha torcida para ganhar, com justiça, qualquer um dos Oscars a que está indicado. É um filme que muda não apenas aos personagens na tela, mas, também, às pessoas do lado de cá, oferecendo um choque de realidade pontuado por esperança e alegria.

Infiltrado na Klan


Apenas depois de assistir Infiltrado na Klan foi que me toquei da prolongada ausência de Spike Lee em minhas sessões de cinema. A última vez havia sido em 2006, com O Plano Perfeito - um suspense policial vigoroso, inteligente, mas convencional. Nada que provocasse nossas convicções pessoais daquela maneira contundente com que Faça a Coisa Certa deixou meio mundo desnorteado, há 30 anos.

A bem da verdade, eu não me lembro bem de como me senti no polêmico final do filme mais incendiário de 1989. Provavelmente, não devo ter gostado. Digamos que consciência social e empatia por grupos oprimidos não eram um ponto forte de minha personalidade, à época. É quase certo que eu pensei algo do tipo "pra quê isso?", mas, juro, não me lembro.

Já faz alguns dias que assisti a Infiltrado na Klan, e, hoje, 22 de janeiro, ele foi indicado a seis Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. Nomeações totalmente merecidas, uma vez que trata-se de um dos melhores filmes que vi em tempos recentes, uma experiência de cinema arrebatadora.

Em mãos menos hábeis, o tema (um curioso e verídico caso de conflito racial) poderia tornar-se uma peça maniqueísta ou sentimental. Desde os créditos de abertura ("essa parada foi baseada em uma merda que aconteceu de verdade, pra valer!", em vez do habitual "baseado em uma história real"), porém, Lee optou por tratar com merecido desprezo cômico a parcela da sociedade que, nos Estados Unidos dos anos 70, ainda tentava deter o avanço das liberdades civis.


Na pequena Colorado Springs, Ron Stallworth (John David Washington) é nomeado primeiro policial negro da comunidade, numa região dominada por forte sentimento racista. Inteligente e proativo, Ron logo é promovido ao serviço de inteligência, onde se autodesigna a missão de desbaratar por dentro a célula local da Ku Klux Klan. Num lance ousado, ele telefona e se declara simpático à organização, embora os queimadores de cruzes nem imaginem que estão falando com um negro. Por razões óbvias, ele não pode realmente entrar para a KKK. Em seu lugar, envia o agente branco Phillip "Flip" Zimmerman (Adam Driver, indicado a Melhor Ator Coadjuvante). Com lábia, sangue-frio e uma generosa dose de sorte, Ron e Flip abrem portas cada vez mais secretas para o coração sombrio da América.

Apesar de não abrir mão da habitual contundência ao tratar das questões raciais (sendo especialmente tocante a cena em que Ron tem que fingir-se de insensível ao discurso do líder Kwame Ture), Lee esmera-se em expor o ridículo e as limitações cognitivas dos brancos caipiras reacionários. Mesmo quando se revelam especialmente perigosos, eles continuam sendo burros e azarados. Não deixa de ser tristemente notável que as barbaridades que proferem, com absurda naturalidade, continuem sendo reproduzidas até hoje.

É nos paralelos com a realidade atual, sejam sutis (com vários diálogos que apontam o dedo para a administração de Donald Trump) ou diretos (com imagens reais dos tumultos de 2017), que Spike Lee pega nossas mentes de jeito, acordando-nos para o surrealismo de ainda estarmos enfrentando um problema de, no mínimo, 50 anos atrás - com alguns avanços, felizmente, mas ainda com um desnecessariamente alto gasto de suor, saliva e, ocasionalmente, sangue.