30.3.19

Liga da Justiça 1


Da mesma forma que aconteceu no cinema, o sobrenome Snyder passou a suscitar mais desconfiança que esperança nos quadrinhos. Embora não sejam parentes, não é descabido comparar o cineasta Zack e o roteirista Scott.

Na tela grande, Zack Snyder rapidamente passou de promessa com Madrugada dos Mortos (2004) e 300 (2006) para o "visionário" (adjetivo que o persegue e ele parece abraçar com fé) diretor do bom Watchmen (2009) que, em seguida, jamais conseguiu repetir os feitos do início de carreira, dirigindo e/ou produzindo as bombas que deixaram a DC comendo a poeira da Marvel no cinema.

Nos quadrinhos, Scott Snyder entregou um arco memorável para o Batman em Detective Comics ("O Espelho Negro", 2011) que o catapultou para o título principal do personagem com status de estrela. Sua passagem por Batman começou bem, com A Corte das Corujas, a prolixa Ano Zero e outros eventos mais ou menos bombásticos, mas terminou de maneira questionável com o Bat-Coelho mecânico. Ele ainda pôs a mão em Batman Eterno e Grandes Astros: Batman, sem jamais repetir a coesão de seus primeiros trabalhos.

Da mesma forma que os estúdios Warner burramente insistiram na visão de Zack Snyder para o Universo DC (cujos único fruto verdadeiramente bom foi o filme da Mulher-Maravilha (2017), dirigido por Patty Jenkins, mas com a pesada mão de Zack visível em cada fotograma), a DC Comics insistiu em Scott Snyder, entregando-lhe o comando de "grandes eventos" que se revelaram imensos tiros n'água, como Noites de Trevas: Metal (2017) e Sem Justiça (2018).

Esta nova série da Liga da Justiça deriva diretamente dos eventos destas duas últimas empreitadas de Scott Snyder. Em algum ponto de sua carreira, o escritor parece ter perdido a habilidade de escrever histórias simples - e, ainda que simplicidade não seja algo que se espere de uma agremiação de semideuses, tampouco dá para se empolgar com uma nova ameaça cósmica capaz de acabar com a realidade a cada 15 dias. O problema, em si, não é a escala: é que Snyder simplesmente não consegue criar no leitor empatia por sua Liga.

Sejamos justos, a primeira história é bem divertida, com os heróis demonstrando intimidade no campo de batalha, sacaneando os maneirismos do Batman e expressando respeito e afeição pelo Caçador de Marte (ponto para Snyder: a LJA não é a mesma coisa sem o eterno "Ajax"). A nova Sala de Justiça (olá, Superamigos!) e a formação que remete ao excelente desenho animado da equipe (aquele produzido por Bruce Timm) são achados. E tem essa capa linda, um verdadeiro ímã emocional pro fã que vinha desestimulado pelas sucessivas fases mornas ou francamente ruins do gibi. Os artistas Jim Cheung e Jorge Jimenez dão conta do recado.

O encanto, porém, não demora a se desfazer, com a megalomania de Snyder empurrando as coisas com a barriga, em uma escala gigantesca e confusa. Quando um pedaço da essência da Muralha da Fonte (quebrada durante os eventos de Noites de Trevas: Metal) começa a rumar para a Terra de modo irrefreável, a Liga da Justiça resolve intervir, ocultando o artefato por meio de magia para evitar pânico mundial e descobrir o que ele esconde. Paralelamente, Lex Luthor reúne uma Legião do Mal (olá de novo, Superamigos!) para apoderar-se da essência da Muralha, apelidada de Totalidade.

Para entender como uma Liga da Justiça pode ser simultaneamente interessante em seus aspectos macro e micro, recomendo a leitura das fases escritas por Grant Morrison e Joe Kelly no título original JLA (uma vez que a Panini, inexplicavelmente, sonega a republicação dessas fases).

Confesso que só mesmo o fato de que sou "putinha" da equipe justifica este investimento - e, resignado, admito: vou seguir comprando. A propósito, o novo acabamento gráfico desta e de outras mensais, tanto da DC quanto da Marvel, entrando em nova fase, é de cair o queixo: capa cartão e papel couché, tudo muito gostoso ao toque. Custa mais caro? É claro que custa: dos costumeiros R$ 7,50 por um gibi padrão de 52 páginas, saltamos para R$ 9,90.

Fica lindo pra colecionar, mas, sejamos francos, dona Panini, ninguém pediu por este autêntico "presente de grego". A quem, além da senhora, realmente interessa essa gourmetização de um lazer que é, essencialmente, descartável? Quando tudo passa a ser "especial", na verdade, ao mesmo tempo, tudo deixa de ser. Torço para que não estejamos diante de uma "bolha" que leve à implosão do mercado - mas que parece que estamos diante de uma, parece.


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LIGA DA JUSTIÇA 1
Scott Snyder (roteiro), Jim Cheung e Jorge Jimenez (arte)
DC/Panini - 52 páginas - R$ 9,90

8.3.19

Retrovisor #2

O que você tomou pra curar sua ressaca do Carnaval de 2009? Fez disquete de backup pra evitar o bug do milênio no final de 1999? Você, pelo menos, já havia nascido em 1989? Hora de dar aquela olhada marota em direção ao passado recente e nem tão recente assim.


HÁ 10 ANOS...

Crise Final


Em 2009, começou a sair no Brasil a minissérie Crise Final, de Grant Morrison. Não fazia muito tempo que outras Crises (a Infinita e a de Identidade) haviam se abatido sobre o Universo DC, e Morrison chegou cheio de ideias mirabolantes. A DC puxou o freio de mão no meio da brincadeira e deu dois tapinhas na mão do autor. Pouca gente entendeu o que Morrison pretendia quando bolou uma história com a vitória definitiva do mal, na qual a temida Equação Antivida foi solta sobre a Terra e o Batman acabou morrendo ao enfrentar Darkseid (ao mesmo tempo em que morria na própria revista mensal, também escrita por ele). Havia uma montanha de séries paralelas, mas elas mais atrapalhavam do que ajudavam. Teve seus momentos (Darkseid renascendo no corpo de Bibbo Bibbowski era assustador), mas, no fim das contas, serviu pra pouca coisa.


HÁ 20 ANOS...

Travis - The Man Who


Parece inacreditável que o Travis foi, um dia, a banda que apadrinhou a chegada do Coldplay e, depois, ficou comendo a poeira dos afilhados cada vez mais famosos. The Man Who era o segundo disco da banda escocesa, um dos grandes discos românticos do final do século e, musicalmente, indie rock de excelente qualidade. À época, o vocalista e letrista Fran Healy foi chamado de "o último heterossexual sensível do rock". Verdade ou exagero, o fato é que o disco está coalhado de canções altamente assobiáveis, com ótimas letras sobre o fim do amor. Ainda que melancólica, a música do Travis aqui é dessas que dão vontade de cantar junto, como em "Turn" (elogiada até por Paul McCartney) e "Why Does It Always Rain on Me?" A pontada no coração que faz os olhos marejarem está garantida na última faixa, "Slide Show", com seu clima de "é, agora acabou pra valer..." Depois de The Man Who, o Travis ainda fez alguma graça com The Invisible Band (2001), mas, depois, foi minguando até a irrelevância.


HÁ 30 ANOS...

Nascido em 4 de Julho



Até 1989, Tom Cruise ainda era visto por boa parte do público como um ator bonito e nada mais. Havia elogios às suas atuações em A Cor do Dinheiro (ao lado do ícone Paul Newman) e Rain Man (ao lado do então ainda ícone Dustin Hoffman), mas Tom só começou a ser levado a sério com sua indicação ao Oscar por Nascido em 4 de Julho, na cerimônia de 1990. Com a habitual falta de sutileza, o diretor Oliver Stone questionava o papel dos EUA na Guerra do Vietnam e o tratamento dedicado aos seus veteranos - este último, um assunto que se prolonga por décadas, em diferentes guerras. Embora tenha vencido o Globo de Ouro daquele ano, Cruise teve a infelicidade de chegar ao Oscar competindo com Robin Williams, Morgan Freeman, Kenneth Brannagh e o incontestável vencedor, Daniel Day-Lewis. Apesar da derrota (e de um punhado de escolhas pessoais e profissionais questionáveis), nos anos seguintes, Tom Cruise virou um dos reis de Hollywood e teve outras duas indicações ao Oscar (por Jerry Maguire, em 1997, e por Magnolia, em 2000).

5.3.19

Trillium


Jeff Lemire é um roteirista que, se não é uma unanimidade, sempre suscita, no mínimo, alguma curiosidade a cada novo trabalho. Ainda que seus esforços possam dividir opiniões, ninguém há de negar que ele é prolífico e tem boas ideias - vide Black Hammer, o gibi de super-heróis mais contemplativo da atualidade, mas cuja leitura é um desafio à vontade de fazer qualquer outra coisa.

Trillium é uma minissérie de ficção científica em 8 partes, escrita por Lemire para a Vertigo. Lançada entre outubro de 2013 e junho de 2014, nos EUA, a história mistura conceitos de distopia espacial e viagem no tempo, com ilustrações do próprio autor - arte esta que divide opiniões ainda mais do que sua escrita.

No ano 3797, a humanidade está reduzida a uns poucos milhares de pessoas, em colônias espaço afora, fugindo de um vírus letal chamado A Coifa. A esperança de sobrevivência reside na criação de uma vacina a partir de uma flor chamada Trillium. A Dra. Nika Temsmith é uma xenobotânica encarregada de estabelecer contato com uma civilização, em cujos limites murados se encontra Trillium suficiente para salvar nossa espécie. As dificuldades de comunicação, porém, parecem contribuir para um inevitável fim da humanidade.

Paralelamente, na Terra, em 1921, William Pike, um ex-soldado britânico traumatizado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, aceita participar de uma expedição da coroa inglesa às selvas peruanas. Seu objetivo é encontrar um "templo perdido dos incas", no qual espera haver tesouros e segredos capazes de mudar o rumo da ciência - e, quem sabe, dar um novo sentido à sua vida. As coisas dão muito errado para o grupo de exploração e William se vê sozinho na selva, acuado e perplexo diante de fenômenos para os quais não consegue ver explicação.

Por mais improvável que pareça, esses dois personagens acabam tendo seus destinos entrelaçados. Nika e William acabam descobrindo que sua contínua aproximação pode comprometer toda a realidade à sua volta - e que nem mesmo isso pode impedi-los de ficarem juntos.


Trata-se de uma bonita ficção científica, com elementos de love story, existencialismo, antimilitarismo e anomalias espaço-temporais. O traço de Lemire (colorização de José Villarrubia) pode ser discutível - talvez lembrando aquele seu amigo ou parente que é mais esforçado do que competente - mas carrega em si uma delicadeza meio esquisita, decadente, que serve muito bem à história. Estamos falando, afinal, de um período de guerra e do virtual fim dos tempos.


Indicada ao Eisner em 2014, Trillium consagra-se como um dos melhores títulos da Vertigo pós-Karen Berger e um dos melhores lançamentos da Panini em 2018 - não apenas pela qualidade da obra em si, quanto pelo formato escolhido: um encadernado em capa cartão, com 200 páginas a bom preço (R$ 29,90), num tempo em que nossas compras na banca ficam cada vez mais leves na sacola e pesadas no bolso.

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TRILLIUM
Jeff Lemire
Vertigo/Panini