3.11.18

Bohemian Rhapsody


Meu primeiro contato com a música do Queen aconteceu durante o primeiro Rock in Rio. Eu tinha 11 anos no já longínquo janeiro de 1985. Nem me lembro se a Rede Globo exibia o festival ao vivo em suas madrugadas - e, de qualquer forma, eu tampouco conseguia esperar acordado até altas horas. O consolo eram os especiais que eram transmitidos nas tardes de sábado e domingo, em que a Globo pinçava um clássico ou outro de cada banda e fazia aquela salada sem critérios que lhe era característica.

Até então, porém, eu, que mal tinha ouvido falar do Queen; estava mais interessado na ascensão de gente que falava minha língua. Era o verão da consagração da geração 80 do pop-rock brasileiro: Paralamas do Sucesso, Blitz, Kid Abelha, Barão Vermelho... Fora isso, o que eu queria ver eram os penteados bufantes de Kate Pierson e Cindy Wilson, do The B-52's. Sim, eu imagino que você esteja me julgando neste momento.

Obviamente, não me escapou aos ouvidos - nem ao coração - a beleza daquela "Love of My Life", cantada em uníssono pala multidão. O Queen, porém, seguiu fora do meu radar. Entenda: a internet não existia, eu morava numa cidade de 20 mil habitantes perdida no oeste baiano, e a revista Bizz, de onde vinha quase tudo que eu aprendia sobre música, só seria lançada em agosto (e, verdade seja dita, por muito tempo, ela dedicou palavras bastante amargas ao Queen).


Corta pra 1992. Freddie Mercury havia morrido em novembro do ano anterior, mas o inesperado sucesso da comédia Wayne's World (aqui no Brasil, Quanto Mais Idiota Melhor, título que diz mais sobre o tradutor do que sobre o filme), com Mike Myers e Dana Carvey, ajudou a trazer o Queen de volta à evidência, com aquela sequência antológica de "Bohemian Rhapsody" no carro.

Corta pra 1999. Em Itumbiara, cidade do interior goiano onde residi na virada do milênio, fui reapresentado ao Queen por um amigo que era muito fã da banda. Agora, sim, com um discernimento musical bem maior, pude conhecer e reconhecer as muitas qualidades de Freddie Mercury, Brian May, John Deacon e Roger Taylor, individualmente e em conjunto. Sem demora, o primeiro Greatest Hits da banda viraria um de meus CDs favoritos.

Foi este mesmo amigo quem me contou uma anedota impagável sobre o Rock in Rio: dizem que uma penca de artistas nacionais se reuniram e pediram para conhecer Freddie Mercury. Um assessor dele foi ao camarim e levou o pedido. Freddie indagou quem eram os fãs pidões. "São artistas importantes", teria dito o assessor, ao que Freddie respondeu: "Eles me conhecem e eu não os conheço. Eu sou um artista importante. Não vou receber ninguém." E não recebeu.

Volta para 2018. A expectativa criada pelos ótimos trailers de Bohemian Rhapsody é correspondida, ao fim de mais de duas horas de filme. Nem parece uma obra que sofreu tanto com um processo de produção conturbado, que envolveu troca de diretores do meio pro final. Bryan Singer, único creditado como diretor, foi substituído por Dexter Fletcher (que teve como assistente o guitarrista Brian May). Publicamente, a demissão de Singer deveu-se a "problemas de saúde na família". Menos publicamente, porém, conta-se que ele irritou a equipe com seus constantes atrasos e sua implicância com o protagonista. Singer deixou cerca de 70% do filme completo, então, seria injusto e exagerado dizer que Fletcher e May o "salvaram".


A história do filme se concentra no Freddie Mercury adulto que, ao fim de um show da banda universitária Smile (na qual conheceu Brian May e Roger Taylor), se oferece para o lugar do vocalista que debandou. Impressionados com o talento vocal do moço de dentes enormes, May e Taylor contratam John Deacon para tocar baixo, e o Smile vira Queen. O resto é história, com direto àqueles momentos previsíveis e inevitáveis: a ascensão meteórica, as disputas de ego, os problemas com drogas e, no caso específico de Freddie, com a AIDS, num tempo em que contrair a doença ainda era sentença de morte (felizmente, o filme não foca em seu sofrimento nem dramatiza seu fim).

Rami Malek está colossal como Freddie Mercury. O ator da série Mr. Robot mimetizou a linguagem corporal de Freddie à perfeição, e os overdubs com a voz do original também soam naturais. Desde já, gosto de sonhar com uma indicação de Malek ao Oscar de melhor ator. Como entretenimento, Bohemian Rhapsody é aprovado com louvor. Como relato biográfico, porém, é acusado de cometer erros cronológicos e "higienizar" a persona de Freddie, um homem muito mais difícil, promíscuo e dado a excessos do que faz parecer. Talvez a verdade fosse mais interessante, mas, provavelmente, não seria tão vendável. Por isso, prevalece a lenda sobre o homem, e o filme não deve ser encarado como peça histórica.

Seja como for, apesar dos defeitos e de um certo moralismo que o impregna, Bohemian Rhapsody tem um elenco eficiente, em que se destaca ainda Aidan Gillen (o Mindinho de Game of Thrones) como John Reid, empresário da banda; Mike Myers, mais uma vez, aparece irreconhecível como Ray Foster, executivo da gravadora EMI.

O estádio de Wembley: como era no Live Aid e como é hoje.

E existe, claro, a música. O maluco processo criativo do Queen deixa pouca margem para dúvidas sobre seu visionarismo e inovação, e a qualidade das canções fala por si. Há dois momentos que me fizeram perder o fôlego: primeiro, a "Love of My Life" do Rock in Rio, que toca nos músculos corretos do coração e bombeia água em direção aos olhos; segundo, a reprodução quase integral do show do Queen no Live Aid, num espantoso Wembley antigo de CGI, em que a banda (e mais do que todos, Freddie) se supera. Ali temos a prova cabal de que não houve, antes ou depois, um showman do calibre de Freddie Mercury.

Independente das inverdades que conta e das liberdades que toma, Bohemian Rhapsody é um filme digno e um tributo adequado a um artista merecedor. Não se esqueça de assistir numa sala com um sistema de som decente. A música do Queen era cuidadosamente calculada para envolver e causar impacto no ouvinte. Desperdiçar esse potencial de melhorar nosso dia seria uma ofensa à Sua Alteza.

3 comentários:

  1. Gosto muuuuito do Queen. O lugar deles no panteão do rock é merecido. E pretendo assistir esse filme.

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  2. Radio Ga Ga foi meu primeiro contato com o Rock, com videoclipes e com o Queen. Desde a primeira vez que vi esse vídeo, comecei a prestar mais atenção ao gênero e, por tabela, na banda.

    Assim como você, acompanhei alguns shows do Rock in Rio 1985 pela Globo, e confesso não lembrar de quase nada. Comprei o DVD do show, mas me decepcionei com a falta de cuidado com o material, pois só se deram ao trabalho de transferir o show de uma mídia para outra (fita para DVD) sem restaurar o som e a imagem. Uma lástima, mas vale o registro. Showzaço. Inclusive fora da cronologia correta, no filme.

    Entrando no mérito da película, percebe-se que a visão mais próxima da realidade não seria mesmo tão palatável ao grande público e não chegaria aos números que alcançou, fazendo sentir a mão pesada de Brian May e Roger Taylor no "auxílio" da condução da história.

    Não que isso tenha sido ruim. Os remanescentes do Smile queriam colocar alguns spots a mais apontando para a já iluminada imagem de grande showman que Freddie alcançou. Um mito como ele não precisaria ter sua história real contada em um filme, visto que isso já foi - e continuará sendo - explorado em documentários diversos.

    Para quem é fã, como eu, foi divertido ver a forma como alguns fatos importantes na carreira do grupo foram retratados, ainda que distorcidos pela liberdade artística, ou pela necessidade de salpicar um pouco de drama.

    De sacanagem, ou não, Brian May já deu a entender que pode sair uma sequência. Compreensível, pois ainda há muito leite a ser tirado dessa pedra. As turnês Queen + Adam Lambert são demonstração cabal de que May e Taylor não se incomodam de ser covers de si mesmos, desde que a bufunfa siga entrando. Como ainda há muita viúva da banda original disposta a botar grana em show requentados, não cabe criticar aqueles que sentem vontade de reviver, ainda que pela metade, os áureos tempos do Queen.

    Com relação ao som, você está coberto de razão. Não valeria a pena ter assistido ao filme em uma sala qualquer. Fui agraciado com um ingresso para assistir em IMAX. Simplesmente do caralho e não deu pra segurar a emoção no show final, minuciosamente retratado pelo trabalho sensacional da equipe de filmagem.

    Inclusive com relação à qualidade de som do Queen, há muito tempo atrás, quando ainda ouvia-se CD no carro, reparei que, independente do volume que eu colocava, o único álbum que não sofria distorção era o Greatest Hits II (único CD do Queen que eu possuía à época). A engenharia de som era algo brutal na produção das músicas e percebi também que o cuidado foi preservado em todos os álbuns que adquiri posteriormente.

    Como comentei em minha crítica no Facebook sobre o filme, ele vale também como uma forma de mostrar para as novas gerações como era a música no tempo que gigantes caminharam pela Terra, nos brindando com performances emblemáticas e encantadoras (ainda que na vida particular o astro principal fosse um escroto de primeira).

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  3. Ao ler as notícias sobre uma possível continuação, de imediato, pensei "como assim?" e não vejo qualquer sentido na coisa. Deve ser - ESPERO QUE SEJA! - apenas brincadeira do May com a mania de continuações que o Cinema experimenta. Seja como for, o filme já está em Blu-ray e agora é só curtir a encenação do Live Aid em casa, no home theater! Abraço, Rodrigo!

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