18.4.21

Detecive Comics Especial (Edição 1.000)


Às vezes, a gente se anima todo porque sabe que tem uma festa grande chegando. Em sua empolgação, você compra roupa nova, pega "pista prime" ou coisa do tipo, enfia umas camisinhas no bolso e, quando chega a grande noite, animadaço, sai pra tal "mãe de todas as baladas".

Chegando lá, porém, a música tá uma merda, a cerveja tá quente, o banheiro tá imundo e as pessoas que você conhece te dão mais vontade de agredir do que de transar. Desconsolado, você vai pra casa sozinho, põe as camisinhas de volta na gaveta e solta um sonoro peido ao se deitar. A traição, a perfídia!

É mais ou menos esta a sensação de ler Batman 80 Anos - Detective Comics Especial. A ocasião era propícia para uma grande celebração: a milésima edição de Detective Comics, primeira "casa" do Batman. Todos os artistas e escritores convidados já deram seu quinhão de contribuição para o mito do Homem-Morcego, mas, virada a última página, a gente tem a sensação de que o cheque da organização ainda não tinha compensado e todo mundo trabalhou de má vontade.

Tudo bem, eu sei que sou um homem beirando meio século de vida, ainda tentando me divertir com um tipo de lazer direcionado a gente com um terço da minha idade. Tudo isso podia ser apenas queixume de um velho ranheta, mas o que acontece é o seguinte: eu sei quando estou diante de uma boa história e sei quando não estou.

Lançado pela Panini em dezembro de 2019, o especial tem 13 histórias inéditas, mais a republicação da primeira história do personagem, de 1939. Entre as duplas criativas, temos Peter Tomasi e Doug Mahnke, Denny O'Neil e Steve Epting, Scott Snyder e Greg Capullo, Warren Ellis e Becky Cloonan, Brian Bendis e Alex Maleev. Como se vê, falta de talento era o menor dos problemas.

O que faltou foi inspiração, mesmo. Com poucas exceções, as histórias se dedicam a remoer sobre as motivações e os traumas do Batman, exaltando sua obstinação e questionando sua sanidade, de modos que já vimos muitas vezes antes e melhor. Muitas vão do nada a coisa alguma. Algumas são bem-boladas e conseguem divertir, como a do Warren Ellis e a do Paul Dini, mas, mesmo elas são apenas boas, não ótimas. Bendis chove no molhado com papinho de "eu já sabia", mas o finalzinho é legal. Geoff Johns e Scott Snyder são apenas constrangedores.

Pelo menos, pra compensar, tem uma cacetada de capas variantes legais, mas, é só. Nenhum editorial sobre o personagem ou a publicação em si, nenhum prefácio ou posfácio de alguém importante. NADA.

A gente sabe, a gente entende: os últimos anos têm sido turbulentos na DC, com uma interminável "dança das cadeiras" no comando, mudanças de direcionamento e até de endereço. Lembre-se que a atual dona da Warner - e, por tabela, da DC - é um conglomerado de comunicações, a AT&T. Eles estão longe de saberem o que fazer com quadrinhos. Até que percebam que tratar a editora apenas como um negócio e não como (também) um ambiente que favoreça a criatividade, ainda veremos muita mediocridade chegar ao papel.

Não foi diferente quando da edição 1.000 de Action Comics, com o Superman. A diferença é que, naquela ocasião, a Panini não fez parecer que a festa seria muito melhor do que realmente foi: o especial de 80 anos do Super saiu em capa cartão e preço honesto de vinte e pouco reais. Este veio com capa dura, formato maior e beirando os 70 reais. Baseado nas opiniões de amigos que leram as edições originais no lançamento, eu sabia que não valia tanto. Na verdade, não valia nem os 50 reais que ficou custando na Amazon um ano inteiro. Quando pude comprá-la por 30, aí sim, achei que não ia me sentir tão lesado.

Já tem outra "festa" se aproximando: a edição 1.039 de Detective Comics marca a milésima aparição do Batman na revista. Imagino, porém, que esta deve ficar restrita às paginas da inflada e inflacionada mensal do Morcegão (que deixei de acompanhar em dezembro passado). Pura conjectura minha, claro. Na fila dessas "festas" do cada vez mais excludente mercado de quadrinhos brasileiro, eu gasto cada vez menos tempo e dinheiro.

19.3.21

Liga da Justiça de Zack Snyder


"Triunfo da vontade" é isso aí:  Zack Snyder e seus fãs fizeram tanto barulho nos últimos anos, pedindo pelo lançamento do tal "SnyderCut" de Liga da Justiça, que a Warner viu uma chance de capitalizar com o maquiado revival do natimorto filme de 2017 – aquele que ficou famoso por ter sido assumido por Joss Whedon (diretor de dois filmes dos Vingadores), quando Snyder afastou-se da direção, muito por conta do suicício de uma filha.

O mundo até parecia outro em 2017: Whedon havia sido convocado como uma espécie de "salvador da pátria", já que as primeiras exibições-testes de Liga da Justiça resultaram em adjetivos como "inassistível". Zack Snyder já colhia os amargos frutos da desconfiança, quando Batman vs Superman: A Origem da Justiça fez boa bilheteria, mas foi massacrado pela crítica.

Hoje, Whedon é persona non grata em praticamente toda parte, por conta das muitas e sérias acusações de assédio moral em várias de suas produções. Por sua vez, Snyder ressurge gozando dos louros da duvidosa glória de um filme que dificilmente teria sido o mesmo de agora, há quatro anos.

O filme chegou às telas em novembro daquele ano e não houve "salvador" que desse jeito naquela bagunça que, mesmo tendo custado cerca de 300 milhões de dólares, era confuso, feio e decepcionante numa série de pontos: não tinha Superman de roupa preta, não tinha Darkseid, mas sobrava céu vermelho e CGI vergonhoso, parecendo gameplay de um jogo fuleiro. Era abissal a diferença com o que se veria, menos de um ano depois, em Vingadores: Guerra Infinita, um filme em que a gente enxerga onde foi gasto cada centavo.

Renegando a paternidade daquele monstro desfigurado, Zack Snyder começou a alimentar o fandom com fotos e notícias sobre os planos que tinha para Liga da Justiça, caso tivesse tido a chance de concluir o filme. Mesmo quando ninguém perguntava nada, ele ia lá e plantava uma notinha, botava uma foto ou sketch da pré-produção. O barulho em torno de uma suposta "versão do diretor" foi crescendo até o limite do insuportável – ou seja, até o ponto em que a Warner sacou que a brincadeira poderia render uma grana (tanta grana, que até justificava o aporte de US$ 50 milhões a mais, para refilmagens e dar aquele lustro nos efeitos especiais).

Pois bem, o tal #SnyderCut chegou – e, olha, eu odeio ter que admitir, mas, valeu a pena.

Antes, porém, já vou falar do imenso elefante branco ameaçando a cristaleira da sala: ainda que seja um filme melhor do que aquele que chegou aos cinemas há quatro anos, Liga da Justiça de Zack Snyder passa longe de ser o melhor filme que poderíamos ter com o grupo. Não redime Snyder da visão equivocada que tem sobre os heróis da DC (que ajudou a alimentar esse mito imbecil de que o universo da editora é "sombrio") e nem do fato de que ele é um cineasta limitado e cheio de cacoetes irritantes.

Entenda, ainda, que seria um tremendo abuso da boa vontade de todos os envolvidos se o filme, com suas quatro horas de duração e orçamento ampliado, ainda deixasse pontas soltas e não saciasse nossa fome de fan service. Muitos filmes dão errado todos os anos, claro, mas nem todos eles ganham uma segunda chance deste porte - nenhum ganha, esta é a verdade. Então, repetindo as sábias palavras de nossas mães, Snyder "não está fazendo mais do que sua obrigação".

Dito isto, sim, o filme melhorou. Parabéns, Zack!

Com mais tempo de tela, a história é contada de maneira mais fluida e coerente, havendo espaço para a introdução de vários personagens e situações. Uma coisa que agradou, mesmo na versão "errada" do filme, foi a Mulher-Maravilha (Gal Gadot). Vendo-a em ação aqui, como uma guerreira de sangue quente, faz a gente lamentar ainda mais o péssimo rumo dado a ela em MM84 ("Snyder was right", então?). Com menos gracinhas de tiozão, Aquaman (Jason Momoa) e Batman (Ben Affleck) também melhoraram. A amizade tóxica entre Flash (Ezra Miller) e Cyborg (Ray Fisher), na qual o primeiro vivia implorando atenção e tomando patada do segundo, também foi revista, com menos e melhores piadas. Cyborg tem, ainda, sua origem detalhada em vários momentos, tornando-se uma peça fundamental na trama. Superman (Henry Cavill) aparece sem o constrangedor retoque digital que cobria o bigode do seu intérprete e ostentando o aguardado uniforme negro. De modo geral, as relações e interações entre os personagens parecem menos artificiais.

Quem mudou muito e para muito melhor foi Steppenwolf (CGI com voz de Ciarán Hinds). O polimento nos efeitos visuais (a aparência geral do filme melhorou demais!) e um punhado de novas e ótimas cenas de pancadaria transformaram o vilão em um oponente bem mais digno. As aparições de Darkseid (voz de Ray Porter) também são legais, ainda que seu envolvimento direto esteja limitado a flashbacks e flashforwards (sim, o tal "knightmare" do Batman – o pesadelo de uma realidade em que o Superman se volta contra a humanidade – é revisto e ampliado, dando alguma graça – não muita, só alguma – ao mais sem-graça Coringa do cinema, o de Jared Leto).

Nem tudo são flores, porém: a trilha sonora joga contra o filme em diversos momentos, tirando o dinamismo das lutas de Diana com aquele "ãããããããã" de árabe com dor de barriga. O Flash continua esquisito e desconjuntado, porque Ezra Miller, simplesmente, não sabe correr, mas foi escalado para ser um velocista mesmo assim. Outra: que tipo de herói seria aquele que aparece em duas cenas com Lois Lane e Bruce Wayne, sabendo que tudo aquilo estava acontecendo, mas sem se envolver? Além disso, a câmera lenta e o flare habituais continuam sendo vícios que Snyder podia dosar melhor.

Se aqui o crédito extra revelou-se bem investido, a manobra de revisitar filmes testados e reprovados pode gerar monstros, como o já especulado "AyerCut" de Esquadrão Suicida (um filme francamente ruim, de um cineasta francamente medíocre), além de prolongar a tendência ao requentamento que se abate sobre Hollywood já há muito tempo. Dado o sucesso de Liga da Justiça de Zack Snyder, não parece precipitado prever que isso continue.

E, embora tenha acabado de estrear o "brinquedo novo", Snyder já está, mais uma vez, inundando a internet com coisas que acabaram de fora, como a possível presença de John Stewart como Lanterna Verde. Isso mesmo, amigos. Quatro horas e uns 400 milhões de dólares depois, Snyder ainda esqueceu de colocar coisas no filme. Alguém compre uma agenda, um bloquinho de post-it ou um frasco de Fosfosol pra esse sujeito.

5.2.21

I May Destroy You


Não há como escapar à presença magnética e beleza quase ameaçadora da multitalentosa Michaela Coel: atriz, cantora, roteirista, produtora e diretora, ela está construindo uma reputação de artista engajada e, ainda assim, comprometida com o entretenimento. A série Chewing Gum (2015), da Netflix, baseada em uma peça de sua autoria, rendeu-lhe um BAFTA de melhor atriz de comédia em 2016. Com o acréscimo de cacife, Coel juntou dois gigantes (BBC e HBO) para a produção de I May Destroy You, na qual discute, entre vários temas espinhosos, a questão do sexo sem consentimento.

Escrever a série de 12 episódios foi a forma que Coel encontrou para superar o abuso que ela própria sofreu. A protagonista Arabella (Coel) é uma celebridade de internet e escritora iniciante com severo bloqueio criativo. A cobrança de seus agentes pela conclusão de seu segundo livro é constante, mas, certa noite, ela se permite desligar um pouco e relaxar com amigos. Moderação, porém, nunca foi um ponto forte de Arabella e, no dia seguinte, ela acorda sem lembrar do que aconteceu ou de como chegou em casa. Aos poucos, porém, começa a ter flashes que a fazem crer que foi estuprada.


Além do tema central atual, relevante e incômodo, I May Destroy You resvala em diversos outros pontos sensíveis, mas nada toma muito espaço da constante busca de Arabella pelas memórias que comprovem o que sofreu e permitam a condenação do(s) culpado(s). O processo é doloroso e confuso, e Arabella comete exageros em sua militância, constantemente morde a mão de quem a ajuda (como os dois melhores amigos, a aspirante a atriz Terry e o personal trainer Kwame) e simplesmente não consegue evitar de meter os pés pelas mãos, seja em questões profissionais ou pessoais.

Felizmente, tudo pelo que o ótimo trio central de personagens passa lhes garante pequenas e grandes transformações, mas sem aquela epifania "mágica" que, por vezes, tira a credibilidade das jornadas de redenção em tantos filmes e séries. Sendo este um relato semiautobiográfico, as situações são bastante críveis, não há uma linha de diálogo desperdiçada, e não há sequer um coadjuvante que entre ou saia de cena sem uma participação relevante.


Os mais pudicos, acostumados ao soft porn e às ilusões românticas das produções americanas, podem sentir-se ultrajados pela crueza e naturalidade com que Coel retrata a nudez e a sexualidade. Ficar tão à vontade para mostrar e mostrar-se chega a ser uma espetacular ironia, considerando que estamos falando da produção audiovisual de um país (a Inglaterra) cujo moralismo conservador atravessou séculos e se manifestava cruelmente até poucas décadas atrás.

E, como dito lá no começo, é simplesmente espetacular como Michaela Coel consegue chocar, conscientizar, assustar e, ainda assim, divertir-nos tanto com I May Destroy You. São 12 episódios que reafirmam nossa crescente fé no entretenimento com conteúdo - você reparou como 2020 foi um ano absurdamente bom para a dramaturgia televisiva? - e nos ajudam a ignorar a solene e completa esnobada que a série sofreu no recém-anunciado Globo de Ouro. Azar dele.

21.1.21

Batman: Criatura da Noite


Como dizemos lá na Bahia, quando queremos abordar uma situação complicada ou dar uma notícia ruim, "receba a galinha pulando" logo de saída: EITA, GIBI CARO DA PORRA! É lindão, capa dura e papel gostoso e tal, mas, meu filho, são OITENTA REAIS. Eu sei que tem gibi bem mais caro e bem menos digno rolando solto por aí, mas isso não o torna barato. É uma punhalada profunda na hipotética jugular do meu orçamento.

Entretanto, sou capaz de afirmar que ele é bom ao ponto de você pagar essa dinheirama e achar que fez bom negócio, porque é um quadrinho lindo, o tipo de coisa que me faz lembrar por que eu amo o Batman, além de providenciar um bem-vindo sopro de ar fresco, já que a DC Comics insiste em esfregar nossa cara nesse lamaçal horroroso de Batman que Ri, Multiverso Sombrio e outras tranqueiras que nos fazem desejar ter nascido cegos.


Ao ler Batman: Criatura da Noite, você notará semelhanças com Superman: Identidade Secreta (2005), e não será por acaso: ambos foram escritas pelo mesmo Kurt Busiek, veterano com uma lista imensa de bons serviços prestados na DC e na Marvel, além de autorais do calibre de Astro City, da Image.
 
Como na minissérie do Superman, aqui temos um sujeito "real" cuja vida apresenta uma série de semelhanças com a do seu "xará" dos quadrinhos: Bruce Wainwright é um garoto de Boston que ama o Batman. É fim da década de 60, e Bruce lê os quadrinhos do herói, fascinado com seus princípios e sua disposição ferrenha em combater a injustiça. Ele tem um adorado tio-avô chamado Alton Frederick, que ele encurtou para "Alfred".

As coincidências entre as vidas dos Bruces, porém, não se resumem àquelas felizes: Bruce Wainwright tem seus pais mortos durante um assalto e, a partir de sua condição de órfão, se tornará uma criança ainda mais madura e taciturna. Só fica mesmo faltando que, em seu desejo por justiça, Bruce crie o Batman - até que, a certa altura, não falta mais.


Teria sido fácil para Busiek cair na armadilha de reescrever Identidade Secreta com outro personagem, mas, felizmente, ele toma caminhos bem diversos: onde havia uma ficção científica solar, temos um suspense psicológico trevoso; onde havia um homem que incorporava o mito quase à perfeição, temos um protagonista obcecado e um "herói" bem diferente de sua versão em papel. Dizer mais que isso poderia estragar as belas surpresas que se desenrolam a cada página.

A minissérie sofreu com um atraso de quase um ano e meio entre a penúltima e a última partes, por conta de problemas pessoais e de saúde que afetaram tanto a Busiek quanto ao seu artista parceiro, John Paul Leon (de Terra X). Ambos estão em grande momento: enquanto Kurt Busiek costura uma trama sólida, sem diálogos supérfluos e que evita soluções fáceis, John Paul Leon faz de Boston sua Gotham particular, com atmosfera noir que remete a clássicos como Batman: Ano Um, ilustrando com igual competência os momentos mais prosaicos e os mais perturbadores.


Faltou bem pouco para termos um quadrinho absolutamente perfeito, pra abrir 2021 daquele jeito, mas a experiência tem seus percalços, com alguns erros de tradução e revisão que funcionam como "quebra-molas" no fluxo de leitura. O nome de um jornal ora é traduzido, ora não é; lemos "cadeira" onde deveria estar escrito "cadeia" - parece pouca coisa, mas o contexto é praticamente invertido com a troca; e há um erro de concordância verbal, quando Bruce diz "as notícias apareceu". Numa graphic novel desse status, com tamanho capricho gráfico, deveria ter havido mais rigor na revisão. São erros grotescos, SIM. Atrapalham a leitura, SIM.

Como dito antes, Batman: Criatura da Noite é um daqueles quadrinhos que reacendem nossa paixão. Pode não ser "o Batman" pra valer, mas todos os bons elementos que caracterizam o mito do Homem-Morcego estão lá. Apresenta uma visão inusitada do personagem sem reinventar a roda, e não faz dele a chave de um segredo multiversal no qual ninguém está interessado (sim, eu tenho uma má-vontade gigantesca para com o que Scott Snyder se tornou e fez da DC; lidem com isso). É um gibi para ocupar lugar de honra na sua estante e ser relido com frequência.

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BATMAN: CRIATURA DA NOITE
Kurt Busiek (roteiro) John Paul Leon (arte)
DC/Panini - 220 páginas - R$ 79,90 (preço sugerido)

5.1.21

Demolidor: O Diabo da Guarda


Houve um tempo, lá pelo meio dos anos 90, em que Kevin Smith circulava por Hollywood como a personificação das boas ideias. Um cara muito cool, pelo mérito de ser absolutamente "gente como a gente", um nerd que havia "chegado lá". Como bom nerd, Smith era fã de quadrinhos. Ele já tinha até escrito os seus próprios, independentes, com histórias dos personagens de seus filmes O Balconista (1994) e Procura-se Amy (1997) - foi neles que surgiram os famosos Jay e Silent Bob, prestes a ganhar um novo filme.

Em 1998, com seu prestígio crescente, Smith foi convidado a escrever o Demolidor na Marvel Knights, nascente divisão adulta da Marvel Comics. Com ele, o amigo pessoal e chefe da iniciativa, Joe Quesada (que, em poucos anos e por muitos anos, se tornaria a pessoa mais poderosa da editora). Smith escreveria e Quesada desenharia (com arte-final de Jimmy Palmiotti).

Eu não era um leitor do Demolidor no ano 2000, quando O Diabo da Guarda saiu na Marvel 2000 (Abril), então, não tenho memória do impacto que ela causou, mas, na introdução deste encadernado em capa dura da Panini Comics, Joe Quesada se derrete em elogios: "Kevin Smith mudou tudo". Lembro que folheei uma versão anterior, em capa cartão, e por pouco não a comprei. Agora, fã declarado do personagem, aproveitei uma promoção e trouxe o Diabo pra dentro de casa (lá ele!).


Entre meus colegas, a história goza do status de obra superestimada, um "clássico" forçado goela abaixo. Não é, de forma alguma, um gibi ruim, mas, de fato, empalidece quando comparado ao que foi feito por gente como Brian Bendis ou Ed Brubaker, anos depois (ainda me falta conhecer melhor o trabalho de Frank Miller e Ann Nocenti com o personagem).

Na trama de O Diabo da Guarda, Matthew Murdock é visitado por uma garota que alega ter engravidado sem contato sexual (e ele saberia, por seus sinais vitais, se ela estivesse mentindo). Além disso, a garota diz que o bebê em seus braços é o Salvador da humanidade, e que anjos a haviam visitado para contar que ele é, em segredo, o Demolidor. Depois, o herói recebe a visita de um misterioso senhor, que alega justamente o contrário: o bebê seria o Anticristo e deveria ser entregue para sacrifício. Em meio a tudo isso, o grande amor de Matt, a radialista Karen Page (que o abandonou, viciou-se em drogas e fez até filmes pornô) retorna, dizendo-se arrependida e "limpa".

Com a cabeça a mil pela volta de Karen (que chega com uma notícia-bomba sobre sua saúde) e pela indecisão quanto ao que fazer com a bebê (sim, uma menina), Matt começa a entrar em parafuso, questionando sua fé, duvidando de seus amigos e cogitando dar cabo da criança. A certa altura, ele fala tanta merda, que me lembra o típico "cidadão de bem" brasileiro. Por sorte, o Demolidor tem um circulo de amigos extremamente tolerantes com sua capacidade de atrair desgraças e, aos poucos, a verdade começa a aparecer.

O desenlace final me incomoda, porque me parece trabalho demais para alguém que o Demolidor mal viu na vida, e ainda mais com aquele intuito de "causar" pra impressionar a um terceiro. O "como", porém, foi bem mais convincente que o "quem" ou o "por quê".


Sendo esta a primeira vez que li O Diabo da Guarda inteira, achei que foi digna do meu tempo. A escrita de Kevin Smith alterna momentos de alta contundência e esperteza com outros de dramalhão vergonhoso, mas, apesar da massa de texto, o saldo é positivo. A arte de Joe Quesada é um massavéio noventista com classe, mas ele dá aos personagens umas expressões abobalhadas que me incomodavam, às vezes. Não se pode negar, porém, que aquelas capas - com a corda entre os bastões do herói dando voltas impossíveis - ganharam lugar fixo no imaginário visual do personagem, e o quebra com o Mercenário tem uns exageros divertidos.

No fim das contas, se não é mesmo uma obra-prima, Demolidor: O Diabo da Guarda se garante como um passatempo honesto. Se achar por bom preço, não vacile.

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DEMOLIDOR: O DIABO DA GUARDA
Kevin Smith (roteiro), Joe Quesada (arte)
Marvel/Panini - 232 páginas - R$ 69 (preço sugerido)