21.1.21

Batman: Criatura da Noite


Como dizemos lá na Bahia, quando queremos abordar uma situação complicada ou dar uma notícia ruim, "receba a galinha pulando" logo de saída: EITA, GIBI CARO DA PORRA! É lindão, capa dura e papel gostoso e tal, mas, meu filho, são OITENTA REAIS. Eu sei que tem gibi bem mais caro e bem menos digno rolando solto por aí, mas isso não o torna barato. É uma punhalada profunda na hipotética jugular do meu orçamento.

Entretanto, sou capaz de afirmar que ele é bom ao ponto de você pagar essa dinheirama e achar que fez bom negócio, porque é um quadrinho lindo, o tipo de coisa que me faz lembrar por que eu amo o Batman, além de providenciar um bem-vindo sopro de ar fresco, já que a DC Comics insiste em esfregar nossa cara nesse lamaçal horroroso de Batman que Ri, Multiverso Sombrio e outras tranqueiras que nos fazem desejar ter nascido cegos.


Ao ler Batman: Criatura da Noite, você notará semelhanças com Superman: Identidade Secreta (2005), e não será por acaso: ambos foram escritas pelo mesmo Kurt Busiek, veterano com uma lista imensa de bons serviços prestados na DC e na Marvel, além de autorais do calibre de Astro City, da Image.
 
Como na minissérie do Superman, aqui temos um sujeito "real" cuja vida apresenta uma série de semelhanças com a do seu "xará" dos quadrinhos: Bruce Wainwright é um garoto de Boston que ama o Batman. É fim da década de 60, e Bruce lê os quadrinhos do herói, fascinado com seus princípios e sua disposição ferrenha em combater a injustiça. Ele tem um adorado tio-avô chamado Alton Frederick, que ele encurtou para "Alfred".

As coincidências entre as vidas dos Bruces, porém, não se resumem àquelas felizes: Bruce Wainwright tem seus pais mortos durante um assalto e, a partir de sua condição de órfão, se tornará uma criança ainda mais madura e taciturna. Só fica mesmo faltando que, em seu desejo por justiça, Bruce crie o Batman - até que, a certa altura, não falta mais.


Teria sido fácil para Busiek cair na armadilha de reescrever Identidade Secreta com outro personagem, mas, felizmente, ele toma caminhos bem diversos: onde havia uma ficção científica solar, temos um suspense psicológico trevoso; onde havia um homem que incorporava o mito quase à perfeição, temos um protagonista obcecado e um "herói" bem diferente de sua versão em papel. Dizer mais que isso poderia estragar as belas surpresas que se desenrolam a cada página.

A minissérie sofreu com um atraso de quase um ano e meio entre a penúltima e a última partes, por conta de problemas pessoais e de saúde que afetaram tanto a Busiek quanto ao seu artista parceiro, John Paul Leon (de Terra X). Ambos estão em grande momento: enquanto Kurt Busiek costura uma trama sólida, sem diálogos supérfluos e que evita soluções fáceis, John Paul Leon faz de Boston sua Gotham particular, com atmosfera noir que remete a clássicos como Batman: Ano Um, ilustrando com igual competência os momentos mais prosaicos e os mais perturbadores.


Faltou bem pouco para termos um quadrinho absolutamente perfeito, pra abrir 2021 daquele jeito, mas a experiência tem seus percalços, com alguns erros de tradução e revisão que funcionam como "quebra-molas" no fluxo de leitura. O nome de um jornal ora é traduzido, ora não é; lemos "cadeira" onde deveria estar escrito "cadeia" - parece pouca coisa, mas o contexto é praticamente invertido com a troca; e há um erro de concordância verbal, quando Bruce diz "as notícias apareceu". Numa graphic novel desse status, com tamanho capricho gráfico, deveria ter havido mais rigor na revisão. São erros grotescos, SIM. Atrapalham a leitura, SIM.

Como dito antes, Batman: Criatura da Noite é um daqueles quadrinhos que reacendem nossa paixão. Pode não ser "o Batman" pra valer, mas todos os bons elementos que caracterizam o mito do Homem-Morcego estão lá. Apresenta uma visão inusitada do personagem sem reinventar a roda, e não faz dele a chave de um segredo multiversal no qual ninguém está interessado (sim, eu tenho uma má-vontade gigantesca para com o que Scott Snyder se tornou e fez da DC; lidem com isso). É um gibi para ocupar lugar de honra na sua estante e ser relido com frequência.

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BATMAN: CRIATURA DA NOITE
Kurt Busiek (roteiro) John Paul Leon (arte)
DC/Panini - 220 páginas - R$ 79,90 (preço sugerido)

5.1.21

Demolidor: O Diabo da Guarda


Houve um tempo, lá pelo meio dos anos 90, em que Kevin Smith circulava por Hollywood como a personificação das boas ideias. Um cara muito cool, pelo mérito de ser absolutamente "gente como a gente", um nerd que havia "chegado lá". Como bom nerd, Smith era fã de quadrinhos. Ele já tinha até escrito os seus próprios, independentes, com histórias dos personagens de seus filmes O Balconista (1994) e Procura-se Amy (1997) - foi neles que surgiram os famosos Jay e Silent Bob, prestes a ganhar um novo filme.

Em 1998, com seu prestígio crescente, Smith foi convidado a escrever o Demolidor na Marvel Knights, nascente divisão adulta da Marvel Comics. Com ele, o amigo pessoal e chefe da iniciativa, Joe Quesada (que, em poucos anos e por muitos anos, se tornaria a pessoa mais poderosa da editora). Smith escreveria e Quesada desenharia (com arte-final de Jimmy Palmiotti).

Eu não era um leitor do Demolidor no ano 2000, quando O Diabo da Guarda saiu na Marvel 2000 (Abril), então, não tenho memória do impacto que ela causou, mas, na introdução deste encadernado em capa dura da Panini Comics, Joe Quesada se derrete em elogios: "Kevin Smith mudou tudo". Lembro que folheei uma versão anterior, em capa cartão, e por pouco não a comprei. Agora, fã declarado do personagem, aproveitei uma promoção e trouxe o Diabo pra dentro de casa (lá ele!).


Entre meus colegas, a história goza do status de obra superestimada, um "clássico" forçado goela abaixo. Não é, de forma alguma, um gibi ruim, mas, de fato, empalidece quando comparado ao que foi feito por gente como Brian Bendis ou Ed Brubaker, anos depois (ainda me falta conhecer melhor o trabalho de Frank Miller e Ann Nocenti com o personagem).

Na trama de O Diabo da Guarda, Matthew Murdock é visitado por uma garota que alega ter engravidado sem contato sexual (e ele saberia, por seus sinais vitais, se ela estivesse mentindo). Além disso, a garota diz que o bebê em seus braços é o Salvador da humanidade, e que anjos a haviam visitado para contar que ele é, em segredo, o Demolidor. Depois, o herói recebe a visita de um misterioso senhor, que alega justamente o contrário: o bebê seria o Anticristo e deveria ser entregue para sacrifício. Em meio a tudo isso, o grande amor de Matt, a radialista Karen Page (que o abandonou, viciou-se em drogas e fez até filmes pornô) retorna, dizendo-se arrependida e "limpa".

Com a cabeça a mil pela volta de Karen (que chega com uma notícia-bomba sobre sua saúde) e pela indecisão quanto ao que fazer com a bebê (sim, uma menina), Matt começa a entrar em parafuso, questionando sua fé, duvidando de seus amigos e cogitando dar cabo da criança. A certa altura, ele fala tanta merda, que me lembra o típico "cidadão de bem" brasileiro. Por sorte, o Demolidor tem um circulo de amigos extremamente tolerantes com sua capacidade de atrair desgraças e, aos poucos, a verdade começa a aparecer.

O desenlace final me incomoda, porque me parece trabalho demais para alguém que o Demolidor mal viu na vida, e ainda mais com aquele intuito de "causar" pra impressionar a um terceiro. O "como", porém, foi bem mais convincente que o "quem" ou o "por quê".


Sendo esta a primeira vez que li O Diabo da Guarda inteira, achei que foi digna do meu tempo. A escrita de Kevin Smith alterna momentos de alta contundência e esperteza com outros de dramalhão vergonhoso, mas, apesar da massa de texto, o saldo é positivo. A arte de Joe Quesada é um massavéio noventista com classe, mas ele dá aos personagens umas expressões abobalhadas que me incomodavam, às vezes. Não se pode negar, porém, que aquelas capas - com a corda entre os bastões do herói dando voltas impossíveis - ganharam lugar fixo no imaginário visual do personagem, e o quebra com o Mercenário tem uns exageros divertidos.

No fim das contas, se não é mesmo uma obra-prima, Demolidor: O Diabo da Guarda se garante como um passatempo honesto. Se achar por bom preço, não vacile.

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DEMOLIDOR: O DIABO DA GUARDA
Kevin Smith (roteiro), Joe Quesada (arte)
Marvel/Panini - 232 páginas - R$ 69 (preço sugerido)