21.10.18

O Outro Lado da Bola


Ao escrever este review, falta apenas uma semana para o segundo turno das eleições presidenciais de 2018. O resultado mais provável é a vitória de Jair Bolsonaro, um candidato que tem sido visto, ao longo de anos, dando declarações muito preconceituosas sobre mulheres, homossexuais e negros. Como num desses mistérios universais insondáveis, Bolsonaro tem um expressivo número de mulheres, homossexuais e negros entre seus apoiadores.

Enquanto lá fora a civilização se esforça para reduzir as diferenças, aqui, no Brasil, abraçamos a desigualdade - e pode ser que nem todo eleitor de Bolsonaro seja misógino, racista ou homofóbico, mas é apenas um fato que os misóginos, racistas e homofóbicos estão com ele e, dado o noticiário recente, sentem-se autorizados a explodir sua violência. Parece irônico, então, que o texto de orelha, escrito pelo jornalista André Rizek, fale justamente de ventos de mudança, causados pela FIFA com suas punições a clubes, atletas e torcidas por manifestações homofóbicas.

Haja o que houver nas urnas, O Outro Lado da Bola não perderia sua importância em outro cenário. O preconceito no futebol não é um problema recente. Vai desde chamar de "puta" a mãe do árbitro a agredir jogador que deu selinho em um amigo. "Viado" é o palavrão mais recorrente quando um jogador em particular desagrada à torcida. Porque, afinal convencionou-se que futebol é "esporte de homem". Na cabeça das torcidas radicais, estádio não é lugar de gay.


A graphic novel escrita por Álvaro Campos e Alê Braga, e desenhada por Jean Diaz, porém, levanta a lebre óbvia: tem gay em toda parte, por que não teria no futebol?

Cris é um jogador em ascensão pelo fictício E. C. Alvinegro Paulista (não é preciso fazer muita força nas analogias), casado e pai de uma adolescente. Durante uma entrevista à televisão, após ser informado do assassinato de um antigo namorado, Cris resolve sair do armário em rede nacional.

A repercussão negativa é imediata, e o roteiro de Campos e Braga esmera-se em cobrir todos os aspectos envolvidos, desde os previsíveis ataques à filha adolescente na escola, até as explosões de violência entre os torcedores que não se importam com a sexualidade de Cris e os que não a aceitam. A repercussão mundo afora, a corrupção nos clubes, a reação de outros colegas secretamente gays...


O roteiro tem bom ritmo e, por mais que pareça panfletário, não alisa na hora de jogar em Cris a responsabilidade por suas próprias mancadas. Os dois autores são (entre outras coisas) roteiristas de cinema e não é difícil perceber uma ambição de levar a história para outras mídias. A arte realista de Jean Diaz pega "emprestados" alguns rostos conhecidos e transita fácil entre a ternura e a brutalidade.

Sem prever solução "mágica" para o problema que aborda, O Outro Lado da Bola contempla toda a resistência esperada a uma iniciativa inclusiva, mas não deixa de apostar em um futuro de mais tolerância, em que a qualidade do atleta será medida apenas por suas proezas esportivas, sem que pese tanto o que faz em sua intimidade. Uma leitura fundamental no tempo em que vivemos.


* * * * *

O OUTRO LADO DA BOLA
Álvaro Campos, Alê Braga e Jean Diaz
Editora Record

5 comentários:

  1. Não gosto de nenhum esporte em geral, e na verdade sequer da cultura em torno. Sempre identifiquei aflorarem bem mais sentimentos belicistas, menosprezo ao adversário, simulação e burlas de regras, desmandos e abusos dos privilegiados (sejam times poderosos, cartolas das federações ou jogadores famosos), apesar do discurso clichê das assessorias de imprensa e recitado de má-vontade pelo Neymar sobre fair play e superação de limites integração, alegria.
    Já que movimento por uma análise de mais nuances tem dificuldade de partir de dentro pra fora, trabalho sério de uma ESPN e esta graphic novel resenhada.

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    1. Perdi muito do meu interesse por esportes, também, mas te garanto que esta é uma leitura campeã. ;)

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  2. Gostei bastante, mais uma que vai ter que entrar na pilha de leituras.

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    1. Minha pilha, que antes era só um conceito, cresce a olhos vistos. Tá um monstrinho-bebê lindo.

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  3. Massa, uma hq pra fugir do lugar comum. E aborda um tema bem atual. Vou procurá-la

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