22.1.19

Infiltrado na Klan


Apenas depois de assistir Infiltrado na Klan foi que me toquei da prolongada ausência de Spike Lee em minhas sessões de cinema. A última vez havia sido em 2006, com O Plano Perfeito - um suspense policial vigoroso, inteligente, mas convencional. Nada que provocasse nossas convicções pessoais daquela maneira contundente com que Faça a Coisa Certa deixou meio mundo desnorteado, há 30 anos.

A bem da verdade, eu não me lembro bem de como me senti no polêmico final do filme mais incendiário de 1989. Provavelmente, não devo ter gostado. Digamos que consciência social e empatia por grupos oprimidos não eram um ponto forte de minha personalidade, à época. É quase certo que eu pensei algo do tipo "pra quê isso?", mas, juro, não me lembro.

Já faz alguns dias que assisti a Infiltrado na Klan, e, hoje, 22 de janeiro, ele foi indicado a seis Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. Nomeações totalmente merecidas, uma vez que trata-se de um dos melhores filmes que vi em tempos recentes, uma experiência de cinema arrebatadora.

Em mãos menos hábeis, o tema (um curioso e verídico caso de conflito racial) poderia tornar-se uma peça maniqueísta ou sentimental. Desde os créditos de abertura ("essa parada foi baseada em uma merda que aconteceu de verdade, pra valer!", em vez do habitual "baseado em uma história real"), porém, Lee optou por tratar com merecido desprezo cômico a parcela da sociedade que, nos Estados Unidos dos anos 70, ainda tentava deter o avanço das liberdades civis.


Na pequena Colorado Springs, Ron Stallworth (John David Washington) é nomeado primeiro policial negro da comunidade, numa região dominada por forte sentimento racista. Inteligente e proativo, Ron logo é promovido ao serviço de inteligência, onde se autodesigna a missão de desbaratar por dentro a célula local da Ku Klux Klan. Num lance ousado, ele telefona e se declara simpático à organização, embora os queimadores de cruzes nem imaginem que estão falando com um negro. Por razões óbvias, ele não pode realmente entrar para a KKK. Em seu lugar, envia o agente branco Phillip "Flip" Zimmerman (Adam Driver, indicado a Melhor Ator Coadjuvante). Com lábia, sangue-frio e uma generosa dose de sorte, Ron e Flip abrem portas cada vez mais secretas para o coração sombrio da América.

Apesar de não abrir mão da habitual contundência ao tratar das questões raciais (sendo especialmente tocante a cena em que Ron tem que fingir-se de insensível ao discurso do líder Kwame Ture), Lee esmera-se em expor o ridículo e as limitações cognitivas dos brancos caipiras reacionários. Mesmo quando se revelam especialmente perigosos, eles continuam sendo burros e azarados. Não deixa de ser tristemente notável que as barbaridades que proferem, com absurda naturalidade, continuem sendo reproduzidas até hoje.

É nos paralelos com a realidade atual, sejam sutis (com vários diálogos que apontam o dedo para a administração de Donald Trump) ou diretos (com imagens reais dos tumultos de 2017), que Spike Lee pega nossas mentes de jeito, acordando-nos para o surrealismo de ainda estarmos enfrentando um problema de, no mínimo, 50 anos atrás - com alguns avanços, felizmente, mas ainda com um desnecessariamente alto gasto de suor, saliva e, ocasionalmente, sangue.

2 comentários:

  1. Infiltrado na Klan foi bastante prejudicado no seu lançamento em Fortaleza, quando adiaram quase um mês da estreia nacional, e uma vez no circuito, teve que ceder vaga pruma mostra das salas de arte da cidade. Foi quase operação temerária conferir no cinema, com estado pegando fogo num surto de violência comandado dos presídios. Mas valeu a pena, na mesma proporção que me entristece que diminui alcance de mais gente presenciar dos mais talentosos cineastas da atualidade equilibrando a mensagem política (e urgente) e num filme de primeira qualidade. Muita gente comemora que Pantera Negra concorrendo a melhor filme este ano no OSCAR, e sem ofuscar o feito que é mesmo gigantesco, mas se quiserem celebrar tudo que se celebra lá, o genuíno representante é a obra de Spike Lee.

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  2. Embora tenha expressado torcida por Green Book no review, o fato é que Infiltrado é muito superior, mas talvez ainda seja contundente demais pra Academia - daí que Green Book, um filme que (ao contrário do que vi ser dito) não acho covarde ou condescendente, certamente teria mais chances de emplacar. Seja como for, acho muito esquisito quando um candidato a Melhor Filme não tem diretores ou atores indicados, caso de Pantera Negra. Abraço, amigo!

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