2.11.20

O Gambito da Rainha


Embora pareça uma daquelas histórias verídicas e edificantes sobre superação, O Gambito da Rainha revela-se uma surpresa muito acima da média - ainda mais considerando-se o padrão Netflix de obras fechadas, cujos finais costumam parecer apressados ou cansados.

Em seus sete magistrais episódios, a minissérie conta a história de Elizabeth Harmon (na fase adolescente e adulta, Anya Taylor-Joy, em grande atuação), que, após a morte da mãe em um acidente, é enviada a um orfanato cristão para garotas. Lá, além de ganhar a simpatia e a amizade da voluntariosa Jolene (Moses Ingram), ela conhece o Sr. Shaibel (Bill Camp), o recluso zelador do local, que passa os dias jogando xadrez sozinho no porão. Desde sempre afeita à matemática e à lógica, a garota consegue convencê-lo a ser seu professor de xadrez - e que aluna a pequena Beth vai se revelar...

Junto com as primeiras vitórias em pequenos torneios locais, vem a chance de adoção. O casal Allston (Patrick Kennedy) e Alma Wheatley (Marielle Heller) levam a garota para viver no centro de Lexington, Kentucky. Beth logo percebe, porém, que as coisas não vão muito bem no lar dos Wheatley. Quando se vê sozinha com a mãe deprimida e alcoólatra, Beth teme que a tragédia que vitimou sua mãe biológica se repita.


Entretanto, se há algo que se pode elogiar em O Gambito da Rainha, é sua constante disposição de contrariar nossas expectativas, sejam aquelas criadas pelas convenções vistas em filmes e séries do gênero, sejam aquelas advindas de nossas próprias convicções. O roteiro (dividido entre o diretor Scott Frank, o co-roteirista Allan Scott e o autor do romance homônimo de 1983 em que se baseia, Walter Tevis) privilegia escolhas pouco convencionais, o que casa perfeitamente com a imprevisibilidade de Beth Taylor, que vai de um orfanato no interior ao topo do mundo, em pouco menos de duas décadas.

Em sua vertiginosa jornada, Beth enfrenta campeões municipais e estaduais, até chegar, ainda muito jovem, à elite do xadrez. O sucesso no mais cerebral dos esportes lhe traz fama e fortuna, mas, previsivelmente, também, a autodestruição que desde sempre se avizinhava. Ainda jovem, Beth se vicia em tranquilizantes e, conforme cresce, vai experimentando outras viagens - porque ela acredita que joga melhor assim.

O ciclo de ascensão, queda e volta por cima de Beth é melhor percebido em suas más escolhas pessoais. Pela ajuda prestada pelos adversários/amigos/amantes Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster) e Harry Beltik (Harry Melling), por exemplo, ela paga com ingratidão e arrogância. Quando o álcool causa seu primeiro grande vexame e frustração, Beth abre a tampa do alçapão no fundo do poço. Mesmo sabendo que ela vai sair de lá, a gente não deixa de sentir certa apreensão. É uma personagem tão marcante e bem-desenvolvida que não tem como não torcer por ela.


A edição faz xadrez parecer a coisa mais emocionante que existe, e a tensão de algumas importantes partidas deixa a gente roendo as unhas! Apesar do tom abertamente feminista da série, ela não demoniza os homens ao redor de Beth (com uma exceção apenas), que parecem sempre igualmente muito dispostos a ensinar e aprender com ela. Quando chega o torneio em Moscou, por exemplo, parece mais um campeonato de boas maneiras do que um evento esportivo. Vale citar o esmero da produção na reconstituição de época, das roupas aos carros e cenários.

Se você chegou até aqui, devo pedir desculpas, porque saber qualquer coisa  sobre O Gambito da Rainha tira um pouco de sua graça. Não era possível para mim, porém, ignorar o impacto positivo dessa ótima série. Era preciso escrever sobre ela e recomendá-la. Seja pelas nuances dos personagens, as ótimas atuações ou as interessantes viradas do roteiro, não faltam méritos. Um triunfo imenso entre as produções próprias da Netflix.

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O GAMBITO DA RAINHA (The Queen's Gambit)
Netflix, 2020

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