27.10.20

Batman: Three Jokers


ATENÇÃO: TEXTO CHEIO DE SPOILERS!

Entre os leitores de quadrinhos de super-heróis, existem diversas regras não escritas. Uma delas prega que um bom personagem não precisa ser mudado para "ficar melhor". Quando o autor se atém ao básico, ele tem ali um manancial perene de boas histórias para contar, e qualquer passo fora dessa trilha segura há de gerar descontentamento.

Engraçado ver esse tipo de pensamento se perpetuar, porque nada poderia estar mais longe da verdade. A única coisa que é realmente intolerável é história ruim (e, sim, eu sei que "ruim" é um conceito totalmente subjetivo). Várias histórias clássicas pegavam nossos heróis favoritos e os distorciam de maneiras impensáveis, mas, quando isso é feito de uma maneira interessante e inteligente, a gente compra a "heresia" sem pensar duas vezes.

Não fosse isso verdade, não teríamos O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Não teríamos Os Supremos, de Mark Millar. Não teríamos a Liga da Justiça cômica, de J.M. DeMatteis e Keith Giffen. Posso garantir a vocês que não gostaria de viver em um mundo onde eu não pudesse ter lido essas coisas.

"Desnecessário" é contra-argumento recorrente. Ora essa, necessário pode até não ser. Talvez você seja jovem demais para lembrar, mas, acredite, houve um tempo em que a gente vivia razoavelmente bem sem internet e smartphones. Necessidades surgem espontaneamente, mas podem, também, ser "sugeridas". Então, até que alguém chegasse à mesa do corajoso editor da ocasião com a louca ideia de fazer um Batman velho, cujo Robin é uma menina, e que acaba por quebrar o pescoço do Coringa e fingir a própria morte, qualquer um acharia que isso seria uma loucura desnecessária.


Em 1988, também era loucura aleijar a Batgirl e dar flashes de uma possível origem para o Coringa. Mesmo assim (e mesmo com Alan Moore desprezando publicamente a história que escreveu), A Piada Mortal virou cânone, a Batgirl virou Oráculo (uma personagem muito mais útil e interessante, diga-se) e o Coringa virou o nome mais importante da ótima galeria de antagonistas do Batman.

Muito tempo depois, a DC foi, em partes mais ou menos iguais, ousada e idiota ao bolar o universo d'Os Novos 52, em 2011. A ideia era enxugar a cronologia e facilitar a vida de possíveis novos leitores. Sim, hoje sabemos que existem maneiras mais inteligentes de fazer isso, sem renegar o passado. Mas Os Novos 52 não são a pauta aqui.

Já estabelecido como um notório contador de boas histórias e consertador de cronologias bagunçadas, Geoff Johns ficou encarregado de escrever a Liga da Justiça, num "dream team" com o brasileiro Ivan Reis. Infelizmente, a Liga de Geoff Johns era muita forma e pouca substância. No final, ele teve a audácia da pilombeta de criar um problemão para si: essa história de que existem três Coringas.


Breve resumo para quem caiu de paraquedas aqui (ou ignorou meu aviso de spoiler): durante a Guerra de Darkseid, Batman controlou o poder de Metron, de Nova Gênese - que é, basicamente, o de saber qualquer coisa. Ao perguntar o verdadeiro nome do Coringa, a Poltrona Mobius respondeu com outra pergunta: "Qual dos três?"

Esse mistério ficou cozinhando por mais de cinco anos, ganhando menções aqui e ali. Cá com meus botões, eu acho que Johns não sabia muito bem o que fazer com aquilo tudo e preferiu esperar brotar uma ideia razoável, em vez de se queimar com uma solução meia-boca de curto prazo e curto efeito.

Não que Geoff Johns tenha falhado em se queimar. Afinal, nesse meio-tempo, ele se incumbiu de cometer outra "heresia", dando uma continuação para a obra-prima Watchmen que, supostamente, serviria para re-re-realinhar o Universo DC. Os absurdos atrasos e a qualidade oscilante de O Relógio do Juízo Final, porém, acabaram minando sua importância, juntamente com a paciência dos leitores. Somemos a isso as acusações de assédio sexual e profissional, e concluiremos que a maré de Johns não era das melhores.

Ainda é cedo para decidir se Three Jokers vai redimir Johns de seus pecados (os dos gibis, pelo menos), mas, olha, eu não posso deixar de dizer que o homem caprichou. Escrevo isto no dia 27/10/20, em que a terceira e última edição da minissérie foi lançada. Finda a leitura, fui tomado por sentimentos conflitantes, mas, conforme a poeira foi baixando, enxergo em Three Jokers uma das melhores história do Batman em tempos recentes e um fecho digno para um mistério pelo qual ninguém tinha pedido.

Os três Coringas que o Batman descobriu foram celebrizados em momentos distintos da carreira do herói: o Criminoso é pouco mais que um bandido comum, pragmático e cruel, como visto em Coringa (a graphic novel de Brian Azzarello); o Palhaço é o assassino de multidões, cujo prazer e diversão vem da tortura e morte em si - foi "esse" quem matou o segundo Robin, Jason Todd, por exemplo (em Morte em Família); por fim, o Comediante é um lunático sofisticado e eloquente, responsável pelo aleijamento de Barbara Gordon (na já citada A Piada Mortal, de Alan Moore).

Essa história de haver três Coringas chega a um ponto em que o Batman não pode mais ignorá-la quando três ataques simultâneos são creditados ao vilão. Nos cenários, vários mortos, todos "coringados" pelo gás do riso. Ainda que com relutância, Batman tem a ajuda dos seus dois parceiros mais afetados pela loucura do Coringa: a Batgirl e o Capuz Vermelho (nova identidade do morto e ressuscitado segundo Robin, que "homenageia" o Coringa).

O primeiro encanto de Three Jokers vem do fato de que este não é um Batman apoiado em tecnologia, como tem sido retratado em tempos recentes. É um detetive em uma busca obstinada, distribuindo pancada na corja covarde e supersticiosa e tendo que lidar com antigos ressentimentos no processo - com Barbara, com Jason e com o próprio vilão.

Acontecem umas coisas loucas, como um tubarão coringado (!!!), mas não é isso que a gente espera do Coringa?

O segundo é que o título e os boatos não mentem: existem três Coringas. Por que eles existem pode parecer inicialmente simples, uma questão de legado. E aí, você, leitor que se acha muito esperto, esquecendo que comprou a ideia de que o Coringa era um só em todos esses anos, apesar das claras diferenças em seu modus operandi, não pode admitir que o Batman seria enganado com um recrutamento que contemplasse a semelhança física e vocal?

As perseguições e pancadarias são eletrizantes. Jason Fabok pode não ser um superastro com traço personalizado (são claras as influências de Jim Lee, Ivan Reis e Gary Frank no seu traço), mas dá conta do recado, fazendo um gibi agradável de ler. A temperatura só cai quando Jason Todd e Barbara Gordon trocam um único beijo, depois que ela o salva de ter a cabeça arrebentada mais uma vez. Para Barbara, foi só um beijo, enfatiza ela repetidas vezes, coisa do calor do momento. Jason, porém, inventa uma atração e um sentimento que o tornam burro e irritante. O leitor se sente como ela, invadido e tendo seu tempo desperdiçado.

O terceiro encanto vem da solução do mistério, quando ficamos sabendo que o Batman, na verdade, sempre soube qual era a real identidade do vilão. Muita gente aponta contradição com a história da Liga da Justiça - afinal, por que o Batman faria uma pergunta cuja resposta conhece? O que eu acredito, porém, é que ele perguntou algo que só ele sabia, como se testando a Poltrona Mobius. O mistério era haver mais de um, mas lembre-se de quantas vezes você ouviu o Batman dizer que o Coringa estava "diferente": mais insano, mais cruel, mais focado. O maior detetive do mundo ainda é, enfim, apenas um homem. Mais esperto que a maioria, mas, ainda assim, um homem.


Previsivelmente, tudo acaba com o Coringa voltando a ser apenas um - e tudo bem. Até aqui, lemos uma boa história, com um mistério que, em mãos menos hábeis, redundaria em manobras questionáveis. Geoff Johns, porém, foi linear e coerente do começo ao fim, homenageando aos autores que o precederam na construção desta mitologia, sem invalidar qualquer coisa feita antes. Pelo contrário, as últimas páginas reforçam a validade das antigas "heresias" (incluindo um desfecho para o problema Joe Chill, o assassino dos Wayne que ninguém queria conhecer).

Há uma passagem primorosa, em que o verdadeiro Coringa, já reduzido a único, explica ao Batman seu plano. "Eu sou o caos. Eu sou o diabo. Eu curei a única dor maior que qualquer outra que eu pudesse causar a você. Agora, eu sou sua maior dor." Palavras que vão ecoar pelo imaginário do leitor por muito tempo. Não há necessidade de cravar agora se Three Jokers é uma obra-prima no universo do Batman, mas você lembra do que eu disse antes sobre necessidades, né? Quando chegar ao Brasil, vai ficar bonita na estante.

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BATMAN: THREE JOKERS
Geoff Johns (roteiro), Jason Fabok (arte)
DC Black Label

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