Imagine que seu trabalho é conviver com a morte. É assim que Stênio passa suas noites: recebendo, abrindo e preparando cadáveres no IML de São Paulo. Pobre, casado e com dois filhos, Stênio leva uma vida nada invejável, mas, sem qualquer explicação, desenvolveu a capacidade de falar com os mortos. Enquanto os prepara para congelar ou embalsamar, Stênio ouve as cabeludas confissões dos defuntos e guarda para si aqueles assuntos (quem iria acreditar, afinal?), até o dia em que a história de um traficante de seu bairro o envolve diretamente.
Morto Não Fala é uma tremenda realização de Dennison Ramalho, roteirista da série Supermax e de alguns episódios de Carcereiros, da Globo. Co-escreveu, ainda, o roteiro de Encarnação do Demônio (2008), último filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Este é seu primeiro longa-metragem.
Com seu ato impensado, Stênio (Daniel de Oliveira, em ótima atuação) se vê "marcado", atraindo perigo fatal para si e para os seus. Os filhos o entendem e respeitam cada vez menos. Quando o casamento ruim com Odete (Fabíula Nascimento) deixa de ser um problema, a espiral descendente de Stênio, posta em andamento por ele próprio, ganha contornos sobrenaturais típicos produções do gênero. Apesar da estética suburbana, a direção segura de Ramalho entrega uma obra que rivaliza em qualidade com boas produções estrangeiras.
O roteiro, do próprio diretor, tem ótimas sacadas, tecendo surpreendentes reviravoltas para quebrar nossas expectativas, seja quando esperamos um jump scare à moda americana, seja quando achamos que a história não tem mais para onde ir. É claro que os jump scares estão lá (alguns, como a cena do forno, de gelar o sangue), ou isso não seria um terror sobrenatural.
O aspecto gore é bastante convincente, um triunfo do filme. Em vez de aplicar maquiagem aos atores "mortos", porém, Ramalho optou por refazer suas feições em CGI - por incrível que pareça, uma decisão em prol do realismo, já que muitos deles estão conversando enquanto Stênio revira suas entranhas - e o efeito, embora geralmente satisfatório, deixa a desejar em alguns momentos.
Com orçamento generoso (3,3 milhões) para uma produção brasileira de nicho, de um diretor "estreante" (aspas necessárias, pois Dennison Ramalho já havia dirigido alguns curtas, como Amor Só de Mãe), Morto Não Fala prova que o investimento cultural, tão dilapidado e criticado nos últimos anos, pode se justificar e compensar grandemente.
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MORTO NÃO FALA (2019)
Com Daniel de Oliveira, Fabíula Nascimento, Bianca Comparato
Direção: Dennison Ramalho
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