3.6.20

Pra branco ler

Arte de Lee Bermejo

"Todas as vidas importam", dizem postagens criadas para rebater ou complementar o #BlackLivesMatter e sua variação em nosso idioma.

Amigos brancos bem-intencionados, por favor, segurem a onda. Parem de passar vergonha.

É óbvio que, fora de qualquer contexto específico, ninguém há de discutir que todas as vidas importam. Dizer que "vidas negras importam", porém, não é o mesmo que dizer que elas importam mais do que outras. Ao contrário: o slogan existe justamente porque, para muita gente, as vidas negras importam menos - e isso pode te chocar, mas, não é nenhuma novidade.

Comecemos pelo mais óbvio: os brancos escravizaram os negros por centenas de anos - e a coisa bate ainda mais pesado quando falamos do Brasil, porque, além de termos sido o último país do ocidente a abolir a escravidão, não cuidamos para que os negros tivessem mínimas condições de subsistência, como a política de "40 acres de terra e uma mula" dos Estados Unidos. A cada avanço abolicionista - como as leis Eusébio de Queiroz (1850), do Ventre-Livre (1871) e dos Sexagenários (1885) - os senhores eram regiamente indenizados pelo Estado. Aos libertos, por sua vez, só cabia a liberdade.

"Ah, mas isso já faz tanto tempo! Até quando vamos ser cobrados por coisas que aconteceram há centenas de anos?"

Se em lugares como os Estados Unidos - onde as leis são levadas bem mais a sério e a população negra é muito mais engajada e unida que a brasileira - as coisas ainda são como são, com negros sendo abordados e detidos apenas por corresponderem a um "tipo suspeito padrão" (consegue mensurar o tamanho da violência de ser tratado como suspeito assim, do nada?), como você pode esperar que no Brasil as coisas sejam diferentes?

Temos um presidente que diz que quilombola "não presta nem pra procriar" e que seus filhos não namorariam negras porque "foram bem-educados".

Já percebeu que em condomínios de luxo se veem poucos negros, e em favelas se veem poucos brancos? Acha que isso acontece porque negros não querem morar em condomínios de luxo?

Façamos um pequeno exercício. 

Primeiro, mentalize uma mulher de negócios.

Agora, mentalize uma empregada doméstica.

Responda honestamente: qual era a etnia de cada um, em sua mente?

Não precisa ficar envergonhado - aliás, precisa, sim. Isso é sinal de que você deve, no mínimo, rever seu conceitos. Contente-se com a possibilidade de que isso talvez não seja culpa sua, mas, de uma coisa da qual você já deve ter ouvido falar e, como a outras, deve ter chamado de "exagero", "mimimi" e coisas do tipo: o racismo estrutural.

É por causa do racismo estrutural que pensamentos e atitudes racistas proliferam e se perpetuam, até mesmo de forma involuntária. Pense em quantas vezes você já se pegou ouvindo, pensando ou mesmo dizendo um ou alguns dos itens da lista a seguir:

- Negro(a) = pauzudo, bunduda, máquina de sexo;
- Negro bem-sucedido = pagodeiro ou jogador;
- Cota racial = sou contra;
- Favela = lugar de preto;
- Cabelo crespo = cabelo ruim;
- Negro vindo em sua direção = perigo;
- Negro em festa bacana = intruso;
- Negro de traços finos = bonito;
- Candomblé ou umbanda = culto ao demônio;
- Freguês negro numa loja. Você: "oi, você podia me ajudar a encontrar a coisa tal...?"

O racismo estrutural no Brasil é uma armadilha muito bem montada, da qual só se escapa com muita reflexão e autocrítica. Não é fácil, leva tempo, mas é possível. Primeiro, você não pode ter vergonha de admitir que é racista, porque isso pode não ser culpa sua. Sem drama, admita, mas decida que vai se informar, que vai ler sobre o assunto (por autores e interlocutores negros, pois é deles a dor!) e vai prestar atenção aos pequenos lapsos de racismo de sua rotina.

Prometa a si mesmo que não vai se calar diante da injustiça racial que o país vive, mas não tente bancar o branco salvador de qualquer coisa. Você vai ajudar, de verdade, conversando com seus outros amigos inconscientemente racistas, aqueles que adoram uma hashtag socialmente engajada, mas não dão "bom dia" ou um sorriso ao balconista negro no mercado. Ensine-os a valorizar a arte, a ciência e a filosofia dos negros, entendendo que a raiva e a agressividade exibidas nelas contra o que se entende como "branquitude" não têm a ver com VOCÊ, a pessoa branca você. Sim, sabemos que você tem amigos negros, que você namora negros(as) e que sua empregada negra "é praticamente da família". A luta é contra o sistema, que se apoia sobre os ombros de uma etnia, à qual sobra quase nada, para que a outra possa ter quase tudo.

Você vai ler e talvez até se sinta pessoalmente ofendido, mas a verdade é uma só: isso tudo acontece porque o homem branco heterossexual (ou um que combine, pelo menos, duas dessas três partes) acha que pode ter tudo e não precisa dividir nada com ninguém. De novo: não é VOCÊ, um cara branco que, de repente, é até uma pessoa bacana. É a entidade, a instituição humana branca como um todo, que arrastou o mundo até aqui - melhor dizendo, foi arrastada por ele.

Por fim, já que "todas as vidas importam", lembre-se que, sim, pela lei, os cidadãos são todos iguais, mas isso não impediu que fosse necessária a criação de uma lei para proteger os negros do racismo; ou de outra, para proteger às mulheres de seus parceiros violentos; mais recentemente, de outra que torna crime a discriminação por orientação sexual. Até a vida daquele bandido que "é bom morto" importa, porque ele é pai, irmão, filho, marido ou amigo de alguém, e, em lugares civilizados de verdade, o Estado não se encarrega da morte de pessoas (se prende e não mantém preso, já é outra discussão).

E, caso ainda não tenha ficado claro, #VidasNegrasImportam.

2 comentários:

  1. Você está certo Batman. Nesse momento atual a frase "vidas negras importam" reflete o que aconteceu recentemente (e infelizmente desde que o mundo é mundo). Eu sou homem branco e heterossexual mas sei que não é legal ser julgado pela cor da pele. Sabemos que toda vida importa mas a vida de quem é negro não costuma ser tratada com muita importância. Nosso mundo é muuuuuito doente 😔

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  2. Reconhecer privilégios já é um grande passo na tomada de consciência, Gerlande. Prossigamos!

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