18.4.21

Detecive Comics Especial (Edição 1.000)


Às vezes, a gente se anima todo porque sabe que tem uma festa grande chegando. Em sua empolgação, você compra roupa nova, pega "pista prime" ou coisa do tipo, enfia umas camisinhas no bolso e, quando chega a grande noite, animadaço, sai pra tal "mãe de todas as baladas".

Chegando lá, porém, a música tá uma merda, a cerveja tá quente, o banheiro tá imundo e as pessoas que você conhece te dão mais vontade de agredir do que de transar. Desconsolado, você vai pra casa sozinho, põe as camisinhas de volta na gaveta e solta um sonoro peido ao se deitar. A traição, a perfídia!

É mais ou menos esta a sensação de ler Batman 80 Anos - Detective Comics Especial. A ocasião era propícia para uma grande celebração: a milésima edição de Detective Comics, primeira "casa" do Batman. Todos os artistas e escritores convidados já deram seu quinhão de contribuição para o mito do Homem-Morcego, mas, virada a última página, a gente tem a sensação de que o cheque da organização ainda não tinha compensado e todo mundo trabalhou de má vontade.

Tudo bem, eu sei que sou um homem beirando meio século de vida, ainda tentando me divertir com um tipo de lazer direcionado a gente com um terço da minha idade. Tudo isso podia ser apenas queixume de um velho ranheta, mas o que acontece é o seguinte: eu sei quando estou diante de uma boa história e sei quando não estou.

Lançado pela Panini em dezembro de 2019, o especial tem 13 histórias inéditas, mais a republicação da primeira história do personagem, de 1939. Entre as duplas criativas, temos Peter Tomasi e Doug Mahnke, Denny O'Neil e Steve Epting, Scott Snyder e Greg Capullo, Warren Ellis e Becky Cloonan, Brian Bendis e Alex Maleev. Como se vê, falta de talento era o menor dos problemas.

O que faltou foi inspiração, mesmo. Com poucas exceções, as histórias se dedicam a remoer sobre as motivações e os traumas do Batman, exaltando sua obstinação e questionando sua sanidade, de modos que já vimos muitas vezes antes e melhor. Muitas vão do nada a coisa alguma. Algumas são bem-boladas e conseguem divertir, como a do Warren Ellis e a do Paul Dini, mas, mesmo elas são apenas boas, não ótimas. Bendis chove no molhado com papinho de "eu já sabia", mas o finalzinho é legal. Geoff Johns e Scott Snyder são apenas constrangedores.

Pelo menos, pra compensar, tem uma cacetada de capas variantes legais, mas, é só. Nenhum editorial sobre o personagem ou a publicação em si, nenhum prefácio ou posfácio de alguém importante. NADA.

A gente sabe, a gente entende: os últimos anos têm sido turbulentos na DC, com uma interminável "dança das cadeiras" no comando, mudanças de direcionamento e até de endereço. Lembre-se que a atual dona da Warner - e, por tabela, da DC - é um conglomerado de comunicações, a AT&T. Eles estão longe de saberem o que fazer com quadrinhos. Até que percebam que tratar a editora apenas como um negócio e não como (também) um ambiente que favoreça a criatividade, ainda veremos muita mediocridade chegar ao papel.

Não foi diferente quando da edição 1.000 de Action Comics, com o Superman. A diferença é que, naquela ocasião, a Panini não fez parecer que a festa seria muito melhor do que realmente foi: o especial de 80 anos do Super saiu em capa cartão e preço honesto de vinte e pouco reais. Este veio com capa dura, formato maior e beirando os 70 reais. Baseado nas opiniões de amigos que leram as edições originais no lançamento, eu sabia que não valia tanto. Na verdade, não valia nem os 50 reais que ficou custando na Amazon um ano inteiro. Quando pude comprá-la por 30, aí sim, achei que não ia me sentir tão lesado.

Já tem outra "festa" se aproximando: a edição 1.039 de Detective Comics marca a milésima aparição do Batman na revista. Imagino, porém, que esta deve ficar restrita às paginas da inflada e inflacionada mensal do Morcegão (que deixei de acompanhar em dezembro passado). Pura conjectura minha, claro. Na fila dessas "festas" do cada vez mais excludente mercado de quadrinhos brasileiro, eu gasto cada vez menos tempo e dinheiro.

19.3.21

Liga da Justiça de Zack Snyder


"Triunfo da vontade" é isso aí:  Zack Snyder e seus fãs fizeram tanto barulho nos últimos anos, pedindo pelo lançamento do tal "SnyderCut" de Liga da Justiça, que a Warner viu uma chance de capitalizar com o maquiado revival do natimorto filme de 2017 – aquele que ficou famoso por ter sido assumido por Joss Whedon (diretor de dois filmes dos Vingadores), quando Snyder afastou-se da direção, muito por conta do suicício de uma filha.

O mundo até parecia outro em 2017: Whedon havia sido convocado como uma espécie de "salvador da pátria", já que as primeiras exibições-testes de Liga da Justiça resultaram em adjetivos como "inassistível". Zack Snyder já colhia os amargos frutos da desconfiança, quando Batman vs Superman: A Origem da Justiça fez boa bilheteria, mas foi massacrado pela crítica.

Hoje, Whedon é persona non grata em praticamente toda parte, por conta das muitas e sérias acusações de assédio moral em várias de suas produções. Por sua vez, Snyder ressurge gozando dos louros da duvidosa glória de um filme que dificilmente teria sido o mesmo de agora, há quatro anos.

O filme chegou às telas em novembro daquele ano e não houve "salvador" que desse jeito naquela bagunça que, mesmo tendo custado cerca de 300 milhões de dólares, era confuso, feio e decepcionante numa série de pontos: não tinha Superman de roupa preta, não tinha Darkseid, mas sobrava céu vermelho e CGI vergonhoso, parecendo gameplay de um jogo fuleiro. Era abissal a diferença com o que se veria, menos de um ano depois, em Vingadores: Guerra Infinita, um filme em que a gente enxerga onde foi gasto cada centavo.

Renegando a paternidade daquele monstro desfigurado, Zack Snyder começou a alimentar o fandom com fotos e notícias sobre os planos que tinha para Liga da Justiça, caso tivesse tido a chance de concluir o filme. Mesmo quando ninguém perguntava nada, ele ia lá e plantava uma notinha, botava uma foto ou sketch da pré-produção. O barulho em torno de uma suposta "versão do diretor" foi crescendo até o limite do insuportável – ou seja, até o ponto em que a Warner sacou que a brincadeira poderia render uma grana (tanta grana, que até justificava o aporte de US$ 50 milhões a mais, para refilmagens e dar aquele lustro nos efeitos especiais).

Pois bem, o tal #SnyderCut chegou – e, olha, eu odeio ter que admitir, mas, valeu a pena.

Antes, porém, já vou falar do imenso elefante branco ameaçando a cristaleira da sala: ainda que seja um filme melhor do que aquele que chegou aos cinemas há quatro anos, Liga da Justiça de Zack Snyder passa longe de ser o melhor filme que poderíamos ter com o grupo. Não redime Snyder da visão equivocada que tem sobre os heróis da DC (que ajudou a alimentar esse mito imbecil de que o universo da editora é "sombrio") e nem do fato de que ele é um cineasta limitado e cheio de cacoetes irritantes.

Entenda, ainda, que seria um tremendo abuso da boa vontade de todos os envolvidos se o filme, com suas quatro horas de duração e orçamento ampliado, ainda deixasse pontas soltas e não saciasse nossa fome de fan service. Muitos filmes dão errado todos os anos, claro, mas nem todos eles ganham uma segunda chance deste porte - nenhum ganha, esta é a verdade. Então, repetindo as sábias palavras de nossas mães, Snyder "não está fazendo mais do que sua obrigação".

Dito isto, sim, o filme melhorou. Parabéns, Zack!

Com mais tempo de tela, a história é contada de maneira mais fluida e coerente, havendo espaço para a introdução de vários personagens e situações. Uma coisa que agradou, mesmo na versão "errada" do filme, foi a Mulher-Maravilha (Gal Gadot). Vendo-a em ação aqui, como uma guerreira de sangue quente, faz a gente lamentar ainda mais o péssimo rumo dado a ela em MM84 ("Snyder was right", então?). Com menos gracinhas de tiozão, Aquaman (Jason Momoa) e Batman (Ben Affleck) também melhoraram. A amizade tóxica entre Flash (Ezra Miller) e Cyborg (Ray Fisher), na qual o primeiro vivia implorando atenção e tomando patada do segundo, também foi revista, com menos e melhores piadas. Cyborg tem, ainda, sua origem detalhada em vários momentos, tornando-se uma peça fundamental na trama. Superman (Henry Cavill) aparece sem o constrangedor retoque digital que cobria o bigode do seu intérprete e ostentando o aguardado uniforme negro. De modo geral, as relações e interações entre os personagens parecem menos artificiais.

Quem mudou muito e para muito melhor foi Steppenwolf (CGI com voz de Ciarán Hinds). O polimento nos efeitos visuais (a aparência geral do filme melhorou demais!) e um punhado de novas e ótimas cenas de pancadaria transformaram o vilão em um oponente bem mais digno. As aparições de Darkseid (voz de Ray Porter) também são legais, ainda que seu envolvimento direto esteja limitado a flashbacks e flashforwards (sim, o tal "knightmare" do Batman – o pesadelo de uma realidade em que o Superman se volta contra a humanidade – é revisto e ampliado, dando alguma graça – não muita, só alguma – ao mais sem-graça Coringa do cinema, o de Jared Leto).

Nem tudo são flores, porém: a trilha sonora joga contra o filme em diversos momentos, tirando o dinamismo das lutas de Diana com aquele "ãããããããã" de árabe com dor de barriga. O Flash continua esquisito e desconjuntado, porque Ezra Miller, simplesmente, não sabe correr, mas foi escalado para ser um velocista mesmo assim. Outra: que tipo de herói seria aquele que aparece em duas cenas com Lois Lane e Bruce Wayne, sabendo que tudo aquilo estava acontecendo, mas sem se envolver? Além disso, a câmera lenta e o flare habituais continuam sendo vícios que Snyder podia dosar melhor.

Se aqui o crédito extra revelou-se bem investido, a manobra de revisitar filmes testados e reprovados pode gerar monstros, como o já especulado "AyerCut" de Esquadrão Suicida (um filme francamente ruim, de um cineasta francamente medíocre), além de prolongar a tendência ao requentamento que se abate sobre Hollywood já há muito tempo. Dado o sucesso de Liga da Justiça de Zack Snyder, não parece precipitado prever que isso continue.

E, embora tenha acabado de estrear o "brinquedo novo", Snyder já está, mais uma vez, inundando a internet com coisas que acabaram de fora, como a possível presença de John Stewart como Lanterna Verde. Isso mesmo, amigos. Quatro horas e uns 400 milhões de dólares depois, Snyder ainda esqueceu de colocar coisas no filme. Alguém compre uma agenda, um bloquinho de post-it ou um frasco de Fosfosol pra esse sujeito.

5.2.21

I May Destroy You


Não há como escapar à presença magnética e beleza quase ameaçadora da multitalentosa Michaela Coel: atriz, cantora, roteirista, produtora e diretora, ela está construindo uma reputação de artista engajada e, ainda assim, comprometida com o entretenimento. A série Chewing Gum (2015), da Netflix, baseada em uma peça de sua autoria, rendeu-lhe um BAFTA de melhor atriz de comédia em 2016. Com o acréscimo de cacife, Coel juntou dois gigantes (BBC e HBO) para a produção de I May Destroy You, na qual discute, entre vários temas espinhosos, a questão do sexo sem consentimento.

Escrever a série de 12 episódios foi a forma que Coel encontrou para superar o abuso que ela própria sofreu. A protagonista Arabella (Coel) é uma celebridade de internet e escritora iniciante com severo bloqueio criativo. A cobrança de seus agentes pela conclusão de seu segundo livro é constante, mas, certa noite, ela se permite desligar um pouco e relaxar com amigos. Moderação, porém, nunca foi um ponto forte de Arabella e, no dia seguinte, ela acorda sem lembrar do que aconteceu ou de como chegou em casa. Aos poucos, porém, começa a ter flashes que a fazem crer que foi estuprada.


Além do tema central atual, relevante e incômodo, I May Destroy You resvala em diversos outros pontos sensíveis, mas nada toma muito espaço da constante busca de Arabella pelas memórias que comprovem o que sofreu e permitam a condenação do(s) culpado(s). O processo é doloroso e confuso, e Arabella comete exageros em sua militância, constantemente morde a mão de quem a ajuda (como os dois melhores amigos, a aspirante a atriz Terry e o personal trainer Kwame) e simplesmente não consegue evitar de meter os pés pelas mãos, seja em questões profissionais ou pessoais.

Felizmente, tudo pelo que o ótimo trio central de personagens passa lhes garante pequenas e grandes transformações, mas sem aquela epifania "mágica" que, por vezes, tira a credibilidade das jornadas de redenção em tantos filmes e séries. Sendo este um relato semiautobiográfico, as situações são bastante críveis, não há uma linha de diálogo desperdiçada, e não há sequer um coadjuvante que entre ou saia de cena sem uma participação relevante.


Os mais pudicos, acostumados ao soft porn e às ilusões românticas das produções americanas, podem sentir-se ultrajados pela crueza e naturalidade com que Coel retrata a nudez e a sexualidade. Ficar tão à vontade para mostrar e mostrar-se chega a ser uma espetacular ironia, considerando que estamos falando da produção audiovisual de um país (a Inglaterra) cujo moralismo conservador atravessou séculos e se manifestava cruelmente até poucas décadas atrás.

E, como dito lá no começo, é simplesmente espetacular como Michaela Coel consegue chocar, conscientizar, assustar e, ainda assim, divertir-nos tanto com I May Destroy You. São 12 episódios que reafirmam nossa crescente fé no entretenimento com conteúdo - você reparou como 2020 foi um ano absurdamente bom para a dramaturgia televisiva? - e nos ajudam a ignorar a solene e completa esnobada que a série sofreu no recém-anunciado Globo de Ouro. Azar dele.

21.1.21

Batman: Criatura da Noite


Como dizemos lá na Bahia, quando queremos abordar uma situação complicada ou dar uma notícia ruim, "receba a galinha pulando" logo de saída: EITA, GIBI CARO DA PORRA! É lindão, capa dura e papel gostoso e tal, mas, meu filho, são OITENTA REAIS. Eu sei que tem gibi bem mais caro e bem menos digno rolando solto por aí, mas isso não o torna barato. É uma punhalada profunda na hipotética jugular do meu orçamento.

Entretanto, sou capaz de afirmar que ele é bom ao ponto de você pagar essa dinheirama e achar que fez bom negócio, porque é um quadrinho lindo, o tipo de coisa que me faz lembrar por que eu amo o Batman, além de providenciar um bem-vindo sopro de ar fresco, já que a DC Comics insiste em esfregar nossa cara nesse lamaçal horroroso de Batman que Ri, Multiverso Sombrio e outras tranqueiras que nos fazem desejar ter nascido cegos.


Ao ler Batman: Criatura da Noite, você notará semelhanças com Superman: Identidade Secreta (2005), e não será por acaso: ambos foram escritas pelo mesmo Kurt Busiek, veterano com uma lista imensa de bons serviços prestados na DC e na Marvel, além de autorais do calibre de Astro City, da Image.
 
Como na minissérie do Superman, aqui temos um sujeito "real" cuja vida apresenta uma série de semelhanças com a do seu "xará" dos quadrinhos: Bruce Wainwright é um garoto de Boston que ama o Batman. É fim da década de 60, e Bruce lê os quadrinhos do herói, fascinado com seus princípios e sua disposição ferrenha em combater a injustiça. Ele tem um adorado tio-avô chamado Alton Frederick, que ele encurtou para "Alfred".

As coincidências entre as vidas dos Bruces, porém, não se resumem àquelas felizes: Bruce Wainwright tem seus pais mortos durante um assalto e, a partir de sua condição de órfão, se tornará uma criança ainda mais madura e taciturna. Só fica mesmo faltando que, em seu desejo por justiça, Bruce crie o Batman - até que, a certa altura, não falta mais.


Teria sido fácil para Busiek cair na armadilha de reescrever Identidade Secreta com outro personagem, mas, felizmente, ele toma caminhos bem diversos: onde havia uma ficção científica solar, temos um suspense psicológico trevoso; onde havia um homem que incorporava o mito quase à perfeição, temos um protagonista obcecado e um "herói" bem diferente de sua versão em papel. Dizer mais que isso poderia estragar as belas surpresas que se desenrolam a cada página.

A minissérie sofreu com um atraso de quase um ano e meio entre a penúltima e a última partes, por conta de problemas pessoais e de saúde que afetaram tanto a Busiek quanto ao seu artista parceiro, John Paul Leon (de Terra X). Ambos estão em grande momento: enquanto Kurt Busiek costura uma trama sólida, sem diálogos supérfluos e que evita soluções fáceis, John Paul Leon faz de Boston sua Gotham particular, com atmosfera noir que remete a clássicos como Batman: Ano Um, ilustrando com igual competência os momentos mais prosaicos e os mais perturbadores.


Faltou bem pouco para termos um quadrinho absolutamente perfeito, pra abrir 2021 daquele jeito, mas a experiência tem seus percalços, com alguns erros de tradução e revisão que funcionam como "quebra-molas" no fluxo de leitura. O nome de um jornal ora é traduzido, ora não é; lemos "cadeira" onde deveria estar escrito "cadeia" - parece pouca coisa, mas o contexto é praticamente invertido com a troca; e há um erro de concordância verbal, quando Bruce diz "as notícias apareceu". Numa graphic novel desse status, com tamanho capricho gráfico, deveria ter havido mais rigor na revisão. São erros grotescos, SIM. Atrapalham a leitura, SIM.

Como dito antes, Batman: Criatura da Noite é um daqueles quadrinhos que reacendem nossa paixão. Pode não ser "o Batman" pra valer, mas todos os bons elementos que caracterizam o mito do Homem-Morcego estão lá. Apresenta uma visão inusitada do personagem sem reinventar a roda, e não faz dele a chave de um segredo multiversal no qual ninguém está interessado (sim, eu tenho uma má-vontade gigantesca para com o que Scott Snyder se tornou e fez da DC; lidem com isso). É um gibi para ocupar lugar de honra na sua estante e ser relido com frequência.

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BATMAN: CRIATURA DA NOITE
Kurt Busiek (roteiro) John Paul Leon (arte)
DC/Panini - 220 páginas - R$ 79,90 (preço sugerido)

5.1.21

Demolidor: O Diabo da Guarda


Houve um tempo, lá pelo meio dos anos 90, em que Kevin Smith circulava por Hollywood como a personificação das boas ideias. Um cara muito cool, pelo mérito de ser absolutamente "gente como a gente", um nerd que havia "chegado lá". Como bom nerd, Smith era fã de quadrinhos. Ele já tinha até escrito os seus próprios, independentes, com histórias dos personagens de seus filmes O Balconista (1994) e Procura-se Amy (1997) - foi neles que surgiram os famosos Jay e Silent Bob, prestes a ganhar um novo filme.

Em 1998, com seu prestígio crescente, Smith foi convidado a escrever o Demolidor na Marvel Knights, nascente divisão adulta da Marvel Comics. Com ele, o amigo pessoal e chefe da iniciativa, Joe Quesada (que, em poucos anos e por muitos anos, se tornaria a pessoa mais poderosa da editora). Smith escreveria e Quesada desenharia (com arte-final de Jimmy Palmiotti).

Eu não era um leitor do Demolidor no ano 2000, quando O Diabo da Guarda saiu na Marvel 2000 (Abril), então, não tenho memória do impacto que ela causou, mas, na introdução deste encadernado em capa dura da Panini Comics, Joe Quesada se derrete em elogios: "Kevin Smith mudou tudo". Lembro que folheei uma versão anterior, em capa cartão, e por pouco não a comprei. Agora, fã declarado do personagem, aproveitei uma promoção e trouxe o Diabo pra dentro de casa (lá ele!).


Entre meus colegas, a história goza do status de obra superestimada, um "clássico" forçado goela abaixo. Não é, de forma alguma, um gibi ruim, mas, de fato, empalidece quando comparado ao que foi feito por gente como Brian Bendis ou Ed Brubaker, anos depois (ainda me falta conhecer melhor o trabalho de Frank Miller e Ann Nocenti com o personagem).

Na trama de O Diabo da Guarda, Matthew Murdock é visitado por uma garota que alega ter engravidado sem contato sexual (e ele saberia, por seus sinais vitais, se ela estivesse mentindo). Além disso, a garota diz que o bebê em seus braços é o Salvador da humanidade, e que anjos a haviam visitado para contar que ele é, em segredo, o Demolidor. Depois, o herói recebe a visita de um misterioso senhor, que alega justamente o contrário: o bebê seria o Anticristo e deveria ser entregue para sacrifício. Em meio a tudo isso, o grande amor de Matt, a radialista Karen Page (que o abandonou, viciou-se em drogas e fez até filmes pornô) retorna, dizendo-se arrependida e "limpa".

Com a cabeça a mil pela volta de Karen (que chega com uma notícia-bomba sobre sua saúde) e pela indecisão quanto ao que fazer com a bebê (sim, uma menina), Matt começa a entrar em parafuso, questionando sua fé, duvidando de seus amigos e cogitando dar cabo da criança. A certa altura, ele fala tanta merda, que me lembra o típico "cidadão de bem" brasileiro. Por sorte, o Demolidor tem um circulo de amigos extremamente tolerantes com sua capacidade de atrair desgraças e, aos poucos, a verdade começa a aparecer.

O desenlace final me incomoda, porque me parece trabalho demais para alguém que o Demolidor mal viu na vida, e ainda mais com aquele intuito de "causar" pra impressionar a um terceiro. O "como", porém, foi bem mais convincente que o "quem" ou o "por quê".


Sendo esta a primeira vez que li O Diabo da Guarda inteira, achei que foi digna do meu tempo. A escrita de Kevin Smith alterna momentos de alta contundência e esperteza com outros de dramalhão vergonhoso, mas, apesar da massa de texto, o saldo é positivo. A arte de Joe Quesada é um massavéio noventista com classe, mas ele dá aos personagens umas expressões abobalhadas que me incomodavam, às vezes. Não se pode negar, porém, que aquelas capas - com a corda entre os bastões do herói dando voltas impossíveis - ganharam lugar fixo no imaginário visual do personagem, e o quebra com o Mercenário tem uns exageros divertidos.

No fim das contas, se não é mesmo uma obra-prima, Demolidor: O Diabo da Guarda se garante como um passatempo honesto. Se achar por bom preço, não vacile.

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DEMOLIDOR: O DIABO DA GUARDA
Kevin Smith (roteiro), Joe Quesada (arte)
Marvel/Panini - 232 páginas - R$ 69 (preço sugerido)

27.12.20

Mulher-Maravilha 1984


Mulher-Maravilha (2017) foi um dos filmes mais importantes da década que se encerra. Nesse tempo, em que tanto se discutiu os papéis de diversas minorias na sociedade, o filme deu protagonismo a uma mulher forte, independente e graciosa, apresentando a maior heroína de toda uma geração de meninas e (por que não?) meninos, que, um dia, vão falar dele como as gerações anteriores falam do Superman de 1978. Fez menos dinheiro do que Batman vs Superman (2016) e Aquaman (2018), mas, para muita gente, é o "campeão moral" dentre os filmes mais recentes da DC.

Garantidos os retornos de Patty Jenkins à direção e de Gal Gadot ao papel que a tornou uma estrela, era muito natural que as expectativas para uma continuação estivessem altas. Depois do ótimo primeiro trailer, então, ao som de "Blue Monday", do New Order, era cada vez maior a crença de que tínhamos uma bonita e divertida aventura a caminho. 

Aí, veio a pandemia, os cinemas fecharam e a estreia de Mulher-Maravilha 1984 foi sucessivamente adiada, até finalmente baterem o martelo pela estreia simultânea nos cinemas americanos e no HBO Max no dia de Natal - no Brasil, a estreia nos poucos cinemas abertos seria no dia 17 de dezembro.

Para nossa alegria, o grande dia chegou e MM84 finalmente estreou... mas, infelizmente, não correspondeu à ansiedade gerada.

O novo filme resolve alguns problemas encontrados no primeiro: os vilões são melhores, o CGI é melhor (mesmo ainda capengando em alguns momentos) e existe um tom otimista e solar de que, francamente, precisávamos muito este ano. O roteiro, porém, é digno de uma Sessão da Tarde oitentista - e não de um jeito legal.

Como em 2017, o filme começa com um belo flashback de Themyscira, a Ilha Paraíso, durante a infância de Diana. As belas locações nas Ilhas Canárias e as proezas das amazonas são de encher os olhos, e a pequena princesa recebe uma dolorosa lição sobre a verdade.

Corta para 1984. Os amigos de Diana no primeiro filme, passado em 1918, naturalmente, estão todos mortos, inclusive Steve Trevor (Chris Pine), seu primeiro amor. Trabalhando sob a identidade civil de Diana Prince, arquéologa do Museu Smithsonian, em Washington, a Mulher-Maravilha só age publicamente sem que haja câmeras por perto e suas aparições são tratadas como "avistamentos". Num shopping center, ela evita o roubo de uma série de artefatos, entre os quais está uma "pedra dos desejos", inicialmente desprezada pelo seu baixo valor material, mas que se prova efetiva.

A chegada da pedra ao Smithsonian atrai a atenção de Maxwell Lord (Pedro Pascal), empresário vigarista com pose de guru de autoajuda. Ele conta com a ingenuidade da desajeitada Dra. Barbara Minerva (Kristen Wiig), gemóloga e zoóloga do museu, para se apossar do artefato. Os desejos realizados pela pedra, porém, sempre têm um alto custo, e suas implicações, antes pessoais, começam a ganhar alcance global.


Como dito antes, os vilões são boas coisas de MM84. Kristen Wiig encontra um tom inseguro e ressentido, perfeito para a Dra. Minerva, e leva tempo até que possamos vê-la como Mulher-Leopardo. Na internet, há quem compare o CGI da personagem transformada ao fiasco que se vê em Cats (2019). Justiça seja feita, o trabalho é até inferior tecnicamente, mas consegue transmitir a força e ferocidade que a tornam uma ameaça enorme (infelizmente, pouco aproveitada). Já Pedro Pascal está perfeito como o pilantra Maxwell Lord, apesar das liberdades tomadas com o personagem, em relação à sua contraparte dos quadrinhos. Suas expressões faciais e seu "papo de vendedor" são boas razões para o momento de grande prestígio vivido pelo ator (que também é o protagonista da série The Mandalorian).

Mesmo Gal Gadot parece ter estudado um pouco mais de sua arte. Continua uma atriz limitada, mas não passa vexame nos momentos mais dramáticos e mostra-se muito apta para cenas de ação. A boa química com Chris Pine se repete aqui, e a presença de Steve Trevor no presente, um dos mistérios levantados pelo trailer, faz sentido dentro da trama.

Infelizmente, todo o bom trabalho dos atores não é suficiente para disfarçar o fiapo que é o roteiro, e a direção de Jenkins, paradoxalmente, "pesa a mão na leveza", com ocorrências caóticas se empilhando, mas sem conseguir que a gente se envolva pra valer com o que está acontecendo. O final é meloso em nível ultrajante, de levar um diabético ao coma, mas a má impressão é suavizada pela simpática e reverente cena pós-créditos, com uma aparição muito esperada pelos fãs.

Artefatos mágicos, cientista boazinha que fica ruinzona, vilão que quer dominar o mundo e gargalha insanamente, heroína que sacrifica a própria felicidade pelo bem do mundo... Como se vê, elementos clássicos de uma Sessão da Tarde, o que coloca o filme em pé de igualdade com obras menores da Marvel, como Homem-Formiga (2015) ou Doutor Estranho (2017), filmes aos quais você assiste enumerando os problemas e esquece cinco minutos depois que sai do cinema ou desliga a TV. Normalmente, estaria tudo bem com isso, mas o padrão estabelecido com o primeiro filme nos fez esperar por muito mais do que MM84 tem a oferecer. Uma pena.

24.12.20

Bowie: Stardust, Rayguns & Moonage Daydream


É com certo pesar que admito que demorei a deixar David Bowie entrar em minha vida. Lá pela segunda metade dos anos 80, quando comecei a me interessar por rock and roll, ele estava vivendo o que muitos acham que foi a pior fase de sua carreira. "Underground", a música que gravou para o filme Labirinto (Jim Henson, 1986) tinha um clipe legal e só. Eu estava muito ligado no indie rock de The Smiths e The Cure, e "Day In, Day Out" ou "Never Let Me Down", singles de seu álbum de 1987, pareciam distantes demais da Londres soturna que então me encantava - e o pessoal da Bizz (extinta revista musical brasileira que, para o bem e para o mal, ajudou a formatar meu gosto musical) odiava o Never Let Me Down, então, por tabela, eu também odiava.

Em 1989, houve a famigerada "O Astronauta de Mármore", versão do Nenhum de Nós para a "Starman" de Bowie - mas, naqueles tempos sem internet, quando eu morava numa cidade do tamanho de um ovo, era nunca que eu ia ter chance de conhecer a original. Em 1990, sua turnê Changes veio ao Brasil, mas, pelos relatos de indiferença do público, eu não era o único ignorante sobre ele nestas terras. Anos depois, com o mercado mais aberto e a MTV Brasil funcionando a mil, pude conhecer a literal cover do Nirvana para sua "The Man Who Sold the World". Agora, sim, que musicão da porra! Acho que preciso conhecer mais desse David Bowie, hein!?

Com a chegada da internet banda larga (com seus "impressionantes" 128 kbps, quando baixar uma única música podia levar horas), os clássicos de Bowie foram, aos poucos, pingando em meus ouvidos. "Heroes", "Space Oddity", "Rebel Rebel", "Life on Mars", "Diamond Dogs"... e, sim, a bendita "Starman" original. Bowie virou alguém familiar, que teve seu talento, valor e influência reconhecidos por mim bem antes de sua morte, em 2016. Sorte minha.

Naquele 10 de janeiro de 2016, eu vi repetir-se uma comoção que só tinha visto quando da morte de John Lennon, em 1980, e de Michael Jackson, em 2009. O mundo se uniu em homenagem para deixar bem claro: perdeu-se um artista inigualável. Era uma hora sombria.

Bowie: Stardust, Rayguns & Moonage Daydreams foi lançado em janeiro de 2020 lá fora, pela Insight Comics, e apenas um mês depois no Brasil, pela Panini Comics. 164 páginas em formato grande e capa dura, a proibitivos R$ 90. Foram 10 meses de espera até uma promoção decente, mas meu exemplar custou meros R$ 27. Boas coisas chegam para aqueles que esperam, dizem (e é verdade).

Foi co-escrito por Steve Horton (procurei suas credenciais e parece que a internet não tem muito a dizer sobre ele) e pelo também desenhista Michael Allred, artista que fez fama com Madman, X-Force/X-Statix, iZombie e, mais recentemente, Surfista Prateado. Dono de um traço nostálgico e cheio de personalidade, Allred, como grande fã de Bowie, delegou-se a missão de retratar a carreira do astro, do começo modesto em 1967 até o fim de sua fase Ziggy Stardust, em 1973, quando parecia não haver como escapar ao fascínio que a revolução artística de Bowie provocava - uma influência que se expandiu para muito além da música.

Obviamente, existem limitações quando se quer contar a vida de alguém que teve cinco décadas de carreira, durante as quais jamais deixou deixou de chamar atenção. Embora seis anos pareçam um recorte pequeno demais em uma história tão rica, foi este o período mais revolucionário da vida e da obra de Bowie, entre o auge da psicodelia e o nascimento do glam rock

As capas icônicas, as canções inesquecíveis, as histórias por trás delas, os bastidores, acertos e mancadas, parceiros e concorrentes geniais... Está tudo aqui, em páginas visualmente soberbas (Allred capricha nas reproduções de fotos célebres e capas de discos) e cuja leitura não é exatamente rápida, mas é totalmente imersiva. É muita coisa acontecendo em pouco tempo, pois assim era a vida do homenageado.

Os anos seguintes são retratados, mas com pouco detalhamento histórico e em bem menos páginas, numa espécie de retrospectiva em fast-forward. Nada que diminua o prazer da leitura ou a importância do lançamento. O livro ainda conta com prefácio de Neil Gaiman (Sandman, Deuses Americanos) e colorização da esposa e constante parceira artística de Michael, sua esposa, Laura Allred.

Bowie: Stardust, Rayguns & Moonage Daydream tem irresistível apelo para quem já conhece (pouco ou muito) a história e a obra de David Bowie. Para o neófito, fica o nosso desejo de que o álbum provoque curiosidade sobre um artista que não deixou substitutos. A ausência de Bowie é um vazio que não se consegue preencher. É essencial ter noção do que se perdeu.

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BOWIE: STARDUST, RAYGUNS & MOONAGE DAYDREAM
Michael Allred & Steve Horton (roteiro), Michael Allred (arte)
Insight/Panini - 164 páginas - R$ 90 (preço sugerido)

16.12.20

Tenet


Como na política brasileira, parece não haver meio termo possível quando se trata do cinema de Christopher Nolan. Chamá-lo, a cada lançamento, de gênio incontestável ou de charlatão pretensioso, também, como na política brasileira, impede a devida apreciação de sua obra: um cinema grandioso, que põe conceitos já complicados em uma embalagem mais complicada ainda e, simultânea e paradoxalmente, tenta tornar tudo isso digerível para o público.

Não se pode negar, porém, que por mais cerebrais que seus filmes sejam (ou tentem parecer), eles preservam o senso de espetáculo que nos leva ao cinema - ainda mais considerando que ele é, hoje em dia, um dos poucos grandes cineastas que abrem mão de grandes intervenções visuais digitais. Fã dos efeitos visuais práticos e de grandes cenários reais, Nolan captura como ninguém imagens grandiosas e impactantes. Seu cinema tem identidade e assinatura, tira o espectador da zona de conforto, e isso é mais do que se pode dizer de muita gente em atividade hoje em dia, quando apostar no seguro é a regra.

Tenet foi o primeiro grande filme a tentar furar o bloqueio provocado pela pandemia de coronavírus e pagou caro pela ousadia: com bilheteria total abaixo de 400 milhões de dólares, não cobriu o orçamento de 200 milhões, somado aos gastos de marketing, absurdamente aumentados a cada adiamento da estreia (nos EUA, em 6 de setembro). Até sua chegada ao streaming e blu-ray, Tenet tinha gerado prejuízo de cerca de 100 milhões de dólares à Warner.

John David Washington e Christopher Nolan: se juntos já causam...

Foi o suficiente para o estúdio, escaldado, tomar uma decisão controversa: lançar todos os seus grandes filmes de 2021 simultaneamente nos cinemas e no HBO Max, o que irritou profundamente a cineastas como James Gunn (O Esquadrão Suicida), Denis Villeneuve (Duna) e o próprio Christopher Nolan, o maior crítico da medida.

Tenet é um intrincado thriller de ação e ficção científica. Nele, um agente sem nome declarado, chamado apenas de O Protagonista (John David Washington) é salvo da morte e designado para desbaratar uma trama que parece envolver um perigo nuclear, visando à destruição do mundo como o conhecemos. Para isso, ele precisa aprender como coisas e pessoas se comportam quando submetidas à entropia reversa.

O conceito é real, mas ainda embrionário, sendo aplicável apenas em escala atômica e por tempo infinitesimal. No filme, a coisa já afeta objetos inteiros e pessoas por horas, dias, semanas. Ou seja, é científica, mas é ficção. Relaxe e lembre-se que está assistindo a um filme, não um tratado de física quântica.

Tecnicamente, o filme é assombroso, com objetos e pessoas em reversão entrópica interagindo com outras em estado normal, gerando cenas de luta estranhas e surpreendentes, além de trazer novas e interessantes perspectivas de elementos batidos do gênero, como duplicatas e aquela famosa recomendação de não interagir com elas. A cena do assalto na rodovia (na qual era imprescindível que o carro-forte assaltado não freasse ou parasse) dá ideia da dimensão da complexidade técnica alcançada aqui.

Trio Ternurinha: Patel, Pattinson e Washington

Para um filme tão longo (2h30), Tenet tem um ritmo bastante fluido. Dá para reclamar que tem mais surpresas do que somos capazes de processar de uma única vez, e que tantos planos dentro de planos não teriam como dar certo - felizmente, alguns dão errado, pra gente manter o pé no chão. O Protagonista coleciona umas vitórias de sorte inacreditável, mas, no processo, se arrebenta todo. Tudo bem, gostamos disso. Alguns diálogos, porém, parecem desnecessariamente empolados (resta saber se para os personagens parecerem mais inteligentes ou para a gente parecer mais burro).

Além da performance vigorosa de John David Washington (alô, Marvel, precisando de um novo Pantera Negra aí?), temos um bem-humorado Robert Pattinson como seu dúbio auxiliar, Neil, e um Kenneth Brannagh exagerado como vilão e marido cruel com a esposa (Elizabeth Debicki). Himesh Patel (Yesterday), Aaron Taylor-Johnson (Kick-Ass) e Michael Caine (A Origem) são alguns outros nomes do elenco.

Não fosse o impeditivo da pandemia, Tenet provavelmente teria feito boa carreira no cinema, com muita gente repetindo (ou "trepetindo") a sessão. Seja para entender melhor as nuances da trama, para rever as muitas sequências visualmente acachapantes, ou para "entrar" no filme já prestando atenção em coisas que são mostradas ou explicadas depois, valeria o tempo e o dinheiro investidos. Somente o tempo dirá se Christopher Nolan é um gênio ou um charlatão. Por enquanto, é apenas impossível não prestar atenção em tudo que ele faz.

12.12.20

Jukebox Encantada #2

 

SADE
LOVERS ROCK
(2000)

A pecha de "motel music" atribuída ao som de Sade não é de todo descabida: são grooves suaves e lânguidos, perfeitos para embalar os apaixonados, seja antes, durante ou depois do coito. Amor romântico é o tema de praticamente toda sua obra - e, que fique claro, isso não é nenhum demérito, visto que Sade e sua ótima banda homônima "vestem" as histórias em doçura e elegância com as quais certos artistas podem apenas sonhar.

Desde que ela (nascida na Nigéria, em 1959, e criada na Inglaterra) surgiu para o mundo da música, num já remoto 1984, cravou seu nome nas paradas de sucessos, nas mentes e nos corações, com standards românticos do calibre de "Smooth Operator", "Your Love Is King", "The Sweetest Taboo", "Stronger Than Pride" e "No Ordinary Love".

Depois de quatro álbuns de grande sucesso, porém, a vida pessoal de Sade Adu estava aos pedaços. Seu primeiro casamento chegou ao fim em 1995. Ela se mudou para o Caribe e teve alguns romances malsucedidos, atraindo a atenção da imprensa da pior maneira, com rumores sobre depressão e vício. Ela tinha estado ativa desde a primeira metade da década de 80 e era uma estrela absoluta na entrada dos 90, mas, depois de Love Deluxe (1992), avessa a entrevistas, fechou-se e entrou num hiato criativo que durou oito longos anos.

Lovers Rock foi lançado em 13 de novembro de 2000. Um mês antes, o primeiro single do disco, "By Your Side" (uma pungente declaração de amor/amizade incondicional, como ainda não havia surgido no século que começava*) já dava pistas de novidades: o som não era o jazz pop que a havia consagrado. Era um soft rock com pendores de reggae (e, sim, há quem chame isso de "lovers rock" como um estilo).

* Tecnicamente, o século XXI só começou em 01/01/2001, claro, mas existe toda uma mística em torno do ano 2000 que permite a licença poética.

Não foi a única diferença percebida: Lovers Rock não tinha saxofone (quase uma marca registrada do som de sua banda) e apontava para uma variedade musical e temática inéditas para Sade. Tendo passado por tudo que passou, a cantora mostrava-se amadurecida em suas reflexões amorosas. "King of Sorrow", segundo single do álbum, fala da simultânea dificuldade em aceitar e abrir mão de um amor desgastante: "É só o dia chegar que tudo volta à tona / Só mais um dia / E nada mais está bom". Outro destaque romântico do disco, "Somebody Already Broke My Heart" fala da dificuldade de permitir-se apaixonar novamente: "Alguém já partiu meu coração / Se alguém tem que perder, eu não quero jogar".


Baladas acústicas, soul music e dub reggae convivem harmonicamente ao longo de 11 faixas, em cujas letras despertam, além dos males do coração, preocupações sociais como a situação dos expatriados (em "Immigrant", com os versos "Vindo de onde veio, ele era rejeitado em todas as portas") e a conscientização sobre a História ("Slave Song", que diz "Eu rezo ao Todo-Poderoso que não me deixe fazer a outro o que foi feito a mim / Ensino aos meus amados filhos que foram escravizados a buscar a luz continuamente").

Não deixa de ser curioso que um álbum tão diverso demonstre uma coesão tão evidente. As faixas se intercalam sem susto e a experiência de ouvi-lo inteiro é das mais agradáveis. Para cada "pancada de amor", como "Every Word" ("Eu vi uma foto / Como você pode ter sido tão descuidado? / Como pode ter feito isso conosco?"), existe um momento sublime de resignação esperançosa como "All About Our Love" ("Querido, nós sabemos / Venha o que vier / Podemos passar por isso").

Perto do fim, a faixa-título, com seus tons de reggae (a passagem pelo Caribe rendeu o que importa: música), aponta lindamente para uma confiança reconquistada no amor ("Você é a Rocha dos Amantes /.../ Aquela a que me agarro em uma tempestade"). Após Lovers Rock, Sade entraria em "retiro" ainda mais demorado: seriam dez anos até Soldier of Love. Naquela virada de século, porém, sua música ajudou a fazer do "fim do mundo" que se antevia uma bonita celebração do amor, embalada pelo som do mar e do vento.

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SADE - Lovers Rock (2000)
Lançamento: 13 de novembro de 2000
Produção: Sade e Mike Pela

01 - "By Your Side"
02 - "Flow"
03 - "King of Sorrow"
04 - "Somebody Already Broke My Heart"
05 - "All About Our Love"
06 - "Slave Song"
07 - "The Sweetest Gift"
08 - "Every Word"
09 - "Immigrant"
10 - "Lovers Rock"
11 - "It's Only Love That Gets You Through"