25.10.19

Nerd velho sofre


Eu estou com 46 anos. Antes, costumava ficar chateado por ser, quase sempre, um dos caçulas onde quer que estivesse. Hoje em dia, o problema se inverteu. Nos grupos sociais onde me vejo inserido (equipe de trabalho, grupos de amigos, etc.) sou sempre um dos seniores. Embora ainda não um idoso, tampouco sou o que se chama de um jovem adulto, mas persevero em certos hábitos adquiridos na juventude. Entre estes, ler quadrinhos sempre foi um de meus favoritos. Todo mês, onde quer que haja uma boa banca de revista por perto, lá estarei eu comprando alguma coisa.

O mercado de quadrinhos brasileiro tem mudado muito ao longo dos últimos anos, mas, infelizmente, nem todas as mudanças são para melhor. Comecemos pelas mudanças não tão boas, minimamente questionáveis ou francamente ruins.

Gibi virou um lazer caro. A Panini Comics - desde 2002, maior editora do ramo no país – inventou de gourmetizar uma parte muito expressiva de seus lançamentos. Com isso, temos visto um monte de porcaria recebendo tratamento gráfico especial. O padrão de uma mensalzinha de duas histórias saltou de capa couché e páginas em papel LWC pra capa cartão e páginas em couché. Um luxo desnecessário e caro (com ele, o preço-padrão subiu de R$ 7,50 pra R$ 9,90), mas, como tudo mais que a Panini faz, há quem defenda – e, como só leva a sério comentário baba-ovo, ela acha que está certa. Prossigamos.

Apesar do alto preço, isso não está necessariamente revertido em alta qualidade. Todo mês, chovem reclamações de erros de impressão, despadronização de coleções e erros graves de português (admitidos, porém, sempre minimizados pela equipe da editora, que alega que isso não prejudica a leitura. Spoiler: prejudica, sim). Não sei quais são os critérios de contratação para trabalhar na Panini, mas, ao que parece, seriedade, cuidado e capricho não parecem estar entre eles. De uns tempos pra cá, a Panini se tornou, literalmente, o que tem pra hoje. Prossigamos.

Minha lista de compras diminuiu por motivos que vão além do preço: a fase pouco empolgante me levou a abandonar Mulher-Maravilha, Liga da Justiça e Os Vingadores. Por outro lado, as históricas edições nacionais de Action Comics e Detective Comics chegaram ao fim espontaneamente: a primeira, no começo do ano, para sair junto com o título principal do Superman; a segunda, em setembro, para começar a sair em encadernados de capa cartão, com arcos completos, formato preferido de muita gente.


A revista principal do Batman, eu confesso que tenho comprado no automático. Tom King alterna altos e baixos, mas seus artifícios narrativos estão ficando manjados e, francamente, cansativos. Abusa da nossa suspensão de descrença, abusa da psicologia de almanaque, abusa dos grids de nove quadros, abusa de um monte de coisa, mas deve vender muito, já que a DC não para de encher sua bola.

Compro Lanterna Verde porque geralmente gosto do que Grant Morrison escreve e o Liam Sharpe está desenhando um absurdo; compro Shazam, porque acho a abordagem do Geoff Johns para o personagem divertida; e compro Capitão América porque Ta-Nehisi Coates me fez gostar do Pantera Negra. As três são publicações bimestrais, um belo fôlego pro orçamento. Só quem não fica muito satisfeito é o tio da banca.

Apesar de gastar menos, ainda ajudo a botar bife e ovo no prato dele. Compro a linha Lendas do Universo DC de Novos Titãs (já próxima do fim) e Liga da Justiça (recém-iniciada). Vez por outra, ainda me animo a levar algum encadernado diferente – coisa que acontece cada vez menos, infelizmente. Das últimas vezes, foram dois ótimos títulos da Marvel: O Imortal Hulk: Homem, Monstro...Ou Ambos? (de Al Ewing e Joe Bennett, um dos gibis mais diferentes e elogiados da atualidade) e X-Men Equipe Vermelha: A Máquina do Ódio (primeira parte da breve, porém, sensacional passagem de Tom Taylor pelos gibis mutantes).


Por falar neles, preparem-se: não apenas deve pintar por aqui a segunda parte deste belo arco de Tom Taylor, mas, também, em 2020, devemos ver a edição nacional da maior revolução dos X-Men em décadas: as séries House of X e Powers of X, em que o roteirista Jonathan Hickman muda tudo que sabemos sobre os X-Men e, ainda assim, preserva tudo que os torna familiares e adorados mundo afora. Li as originais por vias escusas, mas vou gastar meus suados reais na edição brasileira, com muito gosto.

De resto, a vida do nerd velho é aguardar promoções da Amazon ou Saraiva pra comprar encadernados luxuosos pela metade do dobro. Apesar de algumas ofertas verdadeiramente interessantes, na maior parte do tempo, pagamos o que seria o preço justo – culpa de uma geração de leitores que, em boa parte, não leem o que compram: formam (melhor dizendo, pegam emprestada) opinião a partir de canais de YouTube e aceitam de boa os desmandos das editoras, tratando-as como deuses generosos em publicar coleções de lombada bonita (ainda que de conteúdo interno porco), e não como prestadores de serviço passíveis de crítica e cobrança. Como virou praxe dizer por aí, “é você quem financia essa merda”. Podia estar pagando menos e se divertindo mais.

1.9.19

O Imortal Hulk 1


A vida de gibizeiro nível verme (termo que designa aquele leitor/colecionador que segue comprando títulos em fases ruins e resiste muito mal a uma edição com número 1 na capa) é complicada. Eu sou um verme, admito. Entre minhas qualificações para o posto, estão 1) a insistência em seguir comprando Mulher-Maravilha e Liga da Justiça, e 2) a imensa fatia que a Marvel - antes, quase totalmente ignorada - agora ocupa em minhas compras.

Eu sei (porque é minha carteira quem me diz isso, com muita veemência) que não posso comprar tudo que quero. Sei, também, que compro algumas coisas desnecessariamente, mas, olha, tem hora que a mão bate certa! Veja o caso deste gibizinho lindo, por exemplo: O Imortal Hulk.

Eu nunca fui grande fã do Hulk. Gostava da série de TV com o finado Bill Bixby, mas o achava um personagem bobo nos quadrinhos. Sou um cara das palavras, então, acho difícil criar identificação com um personagem que passa boa parte de seu tempo apenas grunhindo. É verdade, tem aquelas fases em que ele está minimamente articulado ou espantosamente inteligente, mas, quando é assim, eu não engulo um gênio com aquele corpo de besta-fera. A bem da verdade, sempre me pareceu personagem de uma nota só.

Muita coisa foi feita, ao longo de todos estes anos, para amaciar meu coração para com o Hulk. A mais bem-sucedida delas foi a versão cinzenta, irascível e tarada de Os Supremos, de Mark Millar. Houve, claro, os filmes do Ang Lee (2003) e do Louis Leterrier (2008), legais, mas esquecíveis. Por fim, houve o Mark Ruffalo - e é impossível não gostar do Ruffalo, portanto...

O que nos leva de volta a este número 1 de O Imortal Hulk. Não vai sair em mensalzinha com duas histórias a R$ 10, mas com cinco edições encadernadas a R$ 21,90. Parabéns, Panini! Já falei que gibi encadernado baratinho com capa cartão é o formato que Deus criou? Provavelmente, sim, mas vale o lembrete.

Tem um selo alardeando uma indicação ao Eisner de Melhor Série na capa. Bem merecida, diga-se, porque é um gibi que se lê de uma lapada com um sorriso no rosto. O britânico Al Ewing escreve e o brasileiro Joe Bennett desenha este primeiro arco. Ao presenciar um assalto em um posto de gasolina, Bruce Banner acaba vítima fatal do tiroteio, apenas para descobrir que, por alguma razão, não pode morrer: mesmo tendo morrido em sua forma "fracote", ao cair da noite, o Hulk surge e o traz de volta da morte.

O tom de terror, com o Hulk como um espreitador noturno, uma aparição da qual ninguém parece ter muita certeza (um bicho imenso e verde, mas as pessoas ainda não se convencem, sei...), é o atrativo principal, mas há outro: a ótima trama, em que, na pequena cidade do Arizona onde morreu e "desmorreu", Banner/Hulk ouve histórias sobre mortes misteriosas e indícios de uso de radiação gama. Sua presença na cidade atrai a jornalista Jackie McGee (na velha série de TV, era um Jack) e um outro gênio/monstro famoso: Walter Langkowski, o Sasquatch, da Tropa Alfa.

O componente sobrenatural fica ainda mais forte na última parte, com um tremendo gancho para a próxima edição - que eu vou comprar, né? A propósito, eu também recomendo que você compre, pois é ótimo. Agora, eu leio Hulk. Era só o que me faltava. Verme!


* * * * * 

O IMORTAL HULK 1
Al Ewing (roteiro), Joe Bennett (arte)
Marvel/Panini - 128 páginas - R$ 21,90

30.8.19

Batman & Robin: Edição Definitiva


Foi engraçado como, apenas um dia após eu ter reclamado, durante a gravação de um episódio de Os Escapistas, da prolongada ausência de Batman & Robin: Edição Definitiva das prateleiras (a primeira e logo esgotada tiragem datava de 2014), a Panini anunciou a volta do encadernado às lojas. Era o único pedaço da passagem de Grant Morrison pelos bat-títulos que me faltava - primeiro, por conta do preço salgado (R$ 99 há cinco anos, R$ 140 agora); depois, pelo demorado sumiço do livro.

Mesmo dividindo opiniões, não há dúvidas de que a passagem de Morrison foi importante para o Batman. Ainda que ninguém tenha engolido essa história de Bruce Wayne morrer (exceto pelo Tio Ben, do Homem-Aranha, quem é que fica morto nos quadrinhos, afinal?), foi um período em que as histórias transitavam entre uma nostalgia meio hermética e inovações fantásticas e/ou despirocadas - duas marcas da obra do escocês, em cujas doses nem sempre ele acerta. Ninguém há de negar, porém, que era sempre minimamente interessante de ler.

Ao fim da Crise Final (outra que já carece de republicação), Batman sacrificou-se para deter Darkseid. Pouca gente apostava que Morrison faria de Dick Grayson (o Asa Noturna e primeiro Robin) e Damian Wayne (filho biológico de Bruce, resgatado por Morrison de uma história considerada, até então, fora da cronologia, O Filho do Demônio) uma Dupla Dinâmica tão interessante - a preferida de muita gente!

Com Tim Drake (o terceiro Robin) seguindo pistas de que Bruce Wayne ainda poderia estar vivo, Damian se autodeclara o mais novo Robin e Dick assume o manto de seu antigo mentor. Juntos, eles tentam manter a paz em Gotham City, enquanto buscam uma maneira de trazer o Batman original de volta. Obviamente, "paz" e "Gotham" não costumam estar na mesma frase com muita frequência e, para testar a fibra dos novos Batman e Robin, Grant Morrison inaugura uma nova galeria de vilões, apelando a bem poucos veteranos do "Batverso". Professor Porko, Flamingo e O Circo do Estranho foram algumas de suas contribuições para a já longa lista de vilões memoráveis do Batman, com resultados diversos.


O melhor de Batman & Robin é, como não poderia mesmo deixar de ser, a interação entre a Dupla Dinâmica estreante.

Dick Grayson já havia sido o Batman em outras ocasiões e seu caráter inabalável o torna um substituto natural de Bruce Wayne, com a vantagem de que ele não é um sofredor crônico, como seu pai adotivo. Dick é um Batman menos bruto e mais elegante; sorridente, até.

Já Damian Wayne evolui, a olhos vistos, de um pequeno maníaco homicida para um autêntico herói. Primeiramente, por birra: ele queria apenas mostrar que era mais digno do legado de seu pai do que um trio de "estranhos" (Dick Grayson, Jason Todd, Tim Drake) e tentou mostrar isso à base de força bruta. Treinado pela Liga de Assassinos de seu avô, Ra's Al Ghul, Damian vai, aos poucos, sofrendo reveses por seu temperamento explosivo, cedendo ao modus operandi da "família Morcego" e aprendendo lições valiosas sobre respeito, amizade e parceria. Não perde a pose que é parte de seu charme, mas acaba se enquadrando.


Neste encadernado, a falta de experiência prévia com quase todos os vilões vistos coloca os heróis em situações mortais umas boas vezes, com graves consequências, e das quais escapam por muito pouco. Não é à toa que as últimas páginas de cada edição reunida aqui termine com uma chamada ao estilo da série televisiva dos anos 60, com letreiros dramáticos para as próximas emoções: Morrison impõe um ritmo frenético e a leitura sequenciada torna a experiência bem próxima do que, hoje em dia, seria maratonar uma série na Netflix. Você simplesmente não consegue parar e quer logo ver como os heróis vão escapar daquele perigo!

Com seu formato diferenciado, Batman & Robin: Edição Definitiva pode quebrar a harmonia visual da coleção da fase Morrison na estante, mas isso não é coisa de que se reclame, diante da diversão proporcionada e da inventividade de Morrison, perfeitamente traduzida nas artes de Frank Quitely, Frazer Irving, Cameron Stewart e alguns outros craques. Uma leitura que já foi bastante impactante em sua publicação original, há 10 anos, e que envelheceu muito bem até aqui.


* * * * *


BATMAN & ROBIN: EDIÇÃO DEFINITIVA
Grant Morrison (roteiro); Frank Quitely, Cameron Stewart e outros (arte)
DC/Panini - 440 páginas - Preço sugerido: R$ 140

30.3.19

Liga da Justiça 1


Da mesma forma que aconteceu no cinema, o sobrenome Snyder passou a suscitar mais desconfiança que esperança nos quadrinhos. Embora não sejam parentes, não é descabido comparar o cineasta Zack e o roteirista Scott.

Na tela grande, Zack Snyder rapidamente passou de promessa com Madrugada dos Mortos (2004) e 300 (2006) para o "visionário" (adjetivo que o persegue e ele parece abraçar com fé) diretor do bom Watchmen (2009) que, em seguida, jamais conseguiu repetir os feitos do início de carreira, dirigindo e/ou produzindo as bombas que deixaram a DC comendo a poeira da Marvel no cinema.

Nos quadrinhos, Scott Snyder entregou um arco memorável para o Batman em Detective Comics ("O Espelho Negro", 2011) que o catapultou para o título principal do personagem com status de estrela. Sua passagem por Batman começou bem, com A Corte das Corujas, a prolixa Ano Zero e outros eventos mais ou menos bombásticos, mas terminou de maneira questionável com o Bat-Coelho mecânico. Ele ainda pôs a mão em Batman Eterno e Grandes Astros: Batman, sem jamais repetir a coesão de seus primeiros trabalhos.

Da mesma forma que os estúdios Warner burramente insistiram na visão de Zack Snyder para o Universo DC (cujos único fruto verdadeiramente bom foi o filme da Mulher-Maravilha (2017), dirigido por Patty Jenkins, mas com a pesada mão de Zack visível em cada fotograma), a DC Comics insistiu em Scott Snyder, entregando-lhe o comando de "grandes eventos" que se revelaram imensos tiros n'água, como Noites de Trevas: Metal (2017) e Sem Justiça (2018).

Esta nova série da Liga da Justiça deriva diretamente dos eventos destas duas últimas empreitadas de Scott Snyder. Em algum ponto de sua carreira, o escritor parece ter perdido a habilidade de escrever histórias simples - e, ainda que simplicidade não seja algo que se espere de uma agremiação de semideuses, tampouco dá para se empolgar com uma nova ameaça cósmica capaz de acabar com a realidade a cada 15 dias. O problema, em si, não é a escala: é que Snyder simplesmente não consegue criar no leitor empatia por sua Liga.

Sejamos justos, a primeira história é bem divertida, com os heróis demonstrando intimidade no campo de batalha, sacaneando os maneirismos do Batman e expressando respeito e afeição pelo Caçador de Marte (ponto para Snyder: a LJA não é a mesma coisa sem o eterno "Ajax"). A nova Sala de Justiça (olá, Superamigos!) e a formação que remete ao excelente desenho animado da equipe (aquele produzido por Bruce Timm) são achados. E tem essa capa linda, um verdadeiro ímã emocional pro fã que vinha desestimulado pelas sucessivas fases mornas ou francamente ruins do gibi. Os artistas Jim Cheung e Jorge Jimenez dão conta do recado.

O encanto, porém, não demora a se desfazer, com a megalomania de Snyder empurrando as coisas com a barriga, em uma escala gigantesca e confusa. Quando um pedaço da essência da Muralha da Fonte (quebrada durante os eventos de Noites de Trevas: Metal) começa a rumar para a Terra de modo irrefreável, a Liga da Justiça resolve intervir, ocultando o artefato por meio de magia para evitar pânico mundial e descobrir o que ele esconde. Paralelamente, Lex Luthor reúne uma Legião do Mal (olá de novo, Superamigos!) para apoderar-se da essência da Muralha, apelidada de Totalidade.

Para entender como uma Liga da Justiça pode ser simultaneamente interessante em seus aspectos macro e micro, recomendo a leitura das fases escritas por Grant Morrison e Joe Kelly no título original JLA (uma vez que a Panini, inexplicavelmente, sonega a republicação dessas fases).

Confesso que só mesmo o fato de que sou "putinha" da equipe justifica este investimento - e, resignado, admito: vou seguir comprando. A propósito, o novo acabamento gráfico desta e de outras mensais, tanto da DC quanto da Marvel, entrando em nova fase, é de cair o queixo: capa cartão e papel couché, tudo muito gostoso ao toque. Custa mais caro? É claro que custa: dos costumeiros R$ 7,50 por um gibi padrão de 52 páginas, saltamos para R$ 9,90.

Fica lindo pra colecionar, mas, sejamos francos, dona Panini, ninguém pediu por este autêntico "presente de grego". A quem, além da senhora, realmente interessa essa gourmetização de um lazer que é, essencialmente, descartável? Quando tudo passa a ser "especial", na verdade, ao mesmo tempo, tudo deixa de ser. Torço para que não estejamos diante de uma "bolha" que leve à implosão do mercado - mas que parece que estamos diante de uma, parece.


* * * * *

LIGA DA JUSTIÇA 1
Scott Snyder (roteiro), Jim Cheung e Jorge Jimenez (arte)
DC/Panini - 52 páginas - R$ 9,90

8.3.19

Retrovisor #2

O que você tomou pra curar sua ressaca do Carnaval de 2009? Fez disquete de backup pra evitar o bug do milênio no final de 1999? Você, pelo menos, já havia nascido em 1989? Hora de dar aquela olhada marota em direção ao passado recente e nem tão recente assim.


HÁ 10 ANOS...

Crise Final


Em 2009, começou a sair no Brasil a minissérie Crise Final, de Grant Morrison. Não fazia muito tempo que outras Crises (a Infinita e a de Identidade) haviam se abatido sobre o Universo DC, e Morrison chegou cheio de ideias mirabolantes. A DC puxou o freio de mão no meio da brincadeira e deu dois tapinhas na mão do autor. Pouca gente entendeu o que Morrison pretendia quando bolou uma história com a vitória definitiva do mal, na qual a temida Equação Antivida foi solta sobre a Terra e o Batman acabou morrendo ao enfrentar Darkseid (ao mesmo tempo em que morria na própria revista mensal, também escrita por ele). Havia uma montanha de séries paralelas, mas elas mais atrapalhavam do que ajudavam. Teve seus momentos (Darkseid renascendo no corpo de Bibbo Bibbowski era assustador), mas, no fim das contas, serviu pra pouca coisa.


HÁ 20 ANOS...

Travis - The Man Who


Parece inacreditável que o Travis foi, um dia, a banda que apadrinhou a chegada do Coldplay e, depois, ficou comendo a poeira dos afilhados cada vez mais famosos. The Man Who era o segundo disco da banda escocesa, um dos grandes discos românticos do final do século e, musicalmente, indie rock de excelente qualidade. À época, o vocalista e letrista Fran Healy foi chamado de "o último heterossexual sensível do rock". Verdade ou exagero, o fato é que o disco está coalhado de canções altamente assobiáveis, com ótimas letras sobre o fim do amor. Ainda que melancólica, a música do Travis aqui é dessas que dão vontade de cantar junto, como em "Turn" (elogiada até por Paul McCartney) e "Why Does It Always Rain on Me?" A pontada no coração que faz os olhos marejarem está garantida na última faixa, "Slide Show", com seu clima de "é, agora acabou pra valer..." Depois de The Man Who, o Travis ainda fez alguma graça com The Invisible Band (2001), mas, depois, foi minguando até a irrelevância.


HÁ 30 ANOS...

Nascido em 4 de Julho



Até 1989, Tom Cruise ainda era visto por boa parte do público como um ator bonito e nada mais. Havia elogios às suas atuações em A Cor do Dinheiro (ao lado do ícone Paul Newman) e Rain Man (ao lado do então ainda ícone Dustin Hoffman), mas Tom só começou a ser levado a sério com sua indicação ao Oscar por Nascido em 4 de Julho, na cerimônia de 1990. Com a habitual falta de sutileza, o diretor Oliver Stone questionava o papel dos EUA na Guerra do Vietnam e o tratamento dedicado aos seus veteranos - este último, um assunto que se prolonga por décadas, em diferentes guerras. Embora tenha vencido o Globo de Ouro daquele ano, Cruise teve a infelicidade de chegar ao Oscar competindo com Robin Williams, Morgan Freeman, Kenneth Brannagh e o incontestável vencedor, Daniel Day-Lewis. Apesar da derrota (e de um punhado de escolhas pessoais e profissionais questionáveis), nos anos seguintes, Tom Cruise virou um dos reis de Hollywood e teve outras duas indicações ao Oscar (por Jerry Maguire, em 1997, e por Magnolia, em 2000).

5.3.19

Trillium


Jeff Lemire é um roteirista que, se não é uma unanimidade, sempre suscita, no mínimo, alguma curiosidade a cada novo trabalho. Ainda que seus esforços possam dividir opiniões, ninguém há de negar que ele é prolífico e tem boas ideias - vide Black Hammer, o gibi de super-heróis mais contemplativo da atualidade, mas cuja leitura é um desafio à vontade de fazer qualquer outra coisa.

Trillium é uma minissérie de ficção científica em 8 partes, escrita por Lemire para a Vertigo. Lançada entre outubro de 2013 e junho de 2014, nos EUA, a história mistura conceitos de distopia espacial e viagem no tempo, com ilustrações do próprio autor - arte esta que divide opiniões ainda mais do que sua escrita.

No ano 3797, a humanidade está reduzida a uns poucos milhares de pessoas, em colônias espaço afora, fugindo de um vírus letal chamado A Coifa. A esperança de sobrevivência reside na criação de uma vacina a partir de uma flor chamada Trillium. A Dra. Nika Temsmith é uma xenobotânica encarregada de estabelecer contato com uma civilização, em cujos limites murados se encontra Trillium suficiente para salvar nossa espécie. As dificuldades de comunicação, porém, parecem contribuir para um inevitável fim da humanidade.

Paralelamente, na Terra, em 1921, William Pike, um ex-soldado britânico traumatizado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, aceita participar de uma expedição da coroa inglesa às selvas peruanas. Seu objetivo é encontrar um "templo perdido dos incas", no qual espera haver tesouros e segredos capazes de mudar o rumo da ciência - e, quem sabe, dar um novo sentido à sua vida. As coisas dão muito errado para o grupo de exploração e William se vê sozinho na selva, acuado e perplexo diante de fenômenos para os quais não consegue ver explicação.

Por mais improvável que pareça, esses dois personagens acabam tendo seus destinos entrelaçados. Nika e William acabam descobrindo que sua contínua aproximação pode comprometer toda a realidade à sua volta - e que nem mesmo isso pode impedi-los de ficarem juntos.


Trata-se de uma bonita ficção científica, com elementos de love story, existencialismo, antimilitarismo e anomalias espaço-temporais. O traço de Lemire (colorização de José Villarrubia) pode ser discutível - talvez lembrando aquele seu amigo ou parente que é mais esforçado do que competente - mas carrega em si uma delicadeza meio esquisita, decadente, que serve muito bem à história. Estamos falando, afinal, de um período de guerra e do virtual fim dos tempos.


Indicada ao Eisner em 2014, Trillium consagra-se como um dos melhores títulos da Vertigo pós-Karen Berger e um dos melhores lançamentos da Panini em 2018 - não apenas pela qualidade da obra em si, quanto pelo formato escolhido: um encadernado em capa cartão, com 200 páginas a bom preço (R$ 29,90), num tempo em que nossas compras na banca ficam cada vez mais leves na sacola e pesadas no bolso.

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TRILLIUM
Jeff Lemire
Vertigo/Panini

22.1.19

Green Book - O Guia


O road movie, como jornada de transformação, é um tipo de filme caro a Hollywood e ao público. Dificilmente seria o tipo de filme que esperaríamos vindo de Peter Farrelly (co-diretor de algumas das comédias mais grosseiras que já se viu, como Quem Vai Ficar com Mary? e Eu, Eu Mesmo e Irene). Menos fácil ainda seria prever que este filme fosse comedido, sensível e acabasse indicado a cinco Oscars, entre os quais, o de Melhor Filme.

A direção segura de Farrelly não foi reconhecida com uma indicação. Seria humanamente impossível, porém, não indicar seus dois ótimos protagonistas: Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Se tivesse que apostar, diria que Ali tem mais chances, já que, aparentemente, ninguém tira o Oscar de Ator Principal de Christian Bale, por seu papel em Vice.

Green Book - O Guia é um filme de temática racial baseado em uma história real, como Infiltrado no Klan. Em lugar da ironia e enfrentamento, porém, toma o caminho do humor e da emoção para retratar a amizade entre um pianista negro (Ali) e seu motorista branco (Mortensen).


Estamos na década de 60. Desempregado, o leão-de-chácara Tony Lip é convidado pelo pianista de jazz Doctor Don Shirley para servir como seu motorista e eventual guarda-costas, durante uma turnê por áreas onde a segregação racial era a regra. Ele próprio cheio de preconceitos, Tony inicialmente declina da oferta, mas sua situação financeira não é nada boa, e ele prefere afastar-se da vida de pequenos delitos que comete com outros amigos ítalo-americanos. Aceitando a proposta do artista, ele o conduz pelos estados do centro-sul americano, numa jornada que inclui dormir em pardieiros e encarar a violência racial, mas, também, permite àqueles homens que, inicialmente, se estranham tanto, conhecer e respeitar um ao outro.

Há uma agradável subversão de clichês no filme de Farrelly: o personagem inteligente, formal e travado é o negro, enquanto o descolado, desbocado e street wise é o branco. Gordo e comilão, Viggo Mortensen é impagável como Tony Lip, mas Mahershala Ali toma o filme pra si a cada aparição. Não apenas pela imponência e elegância, mas pela maior profundidade psicológica de seu personagem. O filme se equilibra muito bem entre o aprendizado de Lip sobre pessoas que intimamente despreza e o de Shirley sobre aquele homem sem qualquer refinamento, mas, principalmente, sobre si mesmo. É por isso que seu concerto final é tão simbolicamente poderoso.

Ainda que saia de mãos abanando no próximo dia 24 de fevereiro, Green Book - O Guia tem minha torcida para ganhar, com justiça, qualquer um dos Oscars a que está indicado. É um filme que muda não apenas aos personagens na tela, mas, também, às pessoas do lado de cá, oferecendo um choque de realidade pontuado por esperança e alegria.

Infiltrado na Klan


Apenas depois de assistir Infiltrado na Klan foi que me toquei da prolongada ausência de Spike Lee em minhas sessões de cinema. A última vez havia sido em 2006, com O Plano Perfeito - um suspense policial vigoroso, inteligente, mas convencional. Nada que provocasse nossas convicções pessoais daquela maneira contundente com que Faça a Coisa Certa deixou meio mundo desnorteado, há 30 anos.

A bem da verdade, eu não me lembro bem de como me senti no polêmico final do filme mais incendiário de 1989. Provavelmente, não devo ter gostado. Digamos que consciência social e empatia por grupos oprimidos não eram um ponto forte de minha personalidade, à época. É quase certo que eu pensei algo do tipo "pra quê isso?", mas, juro, não me lembro.

Já faz alguns dias que assisti a Infiltrado na Klan, e, hoje, 22 de janeiro, ele foi indicado a seis Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. Nomeações totalmente merecidas, uma vez que trata-se de um dos melhores filmes que vi em tempos recentes, uma experiência de cinema arrebatadora.

Em mãos menos hábeis, o tema (um curioso e verídico caso de conflito racial) poderia tornar-se uma peça maniqueísta ou sentimental. Desde os créditos de abertura ("essa parada foi baseada em uma merda que aconteceu de verdade, pra valer!", em vez do habitual "baseado em uma história real"), porém, Lee optou por tratar com merecido desprezo cômico a parcela da sociedade que, nos Estados Unidos dos anos 70, ainda tentava deter o avanço das liberdades civis.


Na pequena Colorado Springs, Ron Stallworth (John David Washington) é nomeado primeiro policial negro da comunidade, numa região dominada por forte sentimento racista. Inteligente e proativo, Ron logo é promovido ao serviço de inteligência, onde se autodesigna a missão de desbaratar por dentro a célula local da Ku Klux Klan. Num lance ousado, ele telefona e se declara simpático à organização, embora os queimadores de cruzes nem imaginem que estão falando com um negro. Por razões óbvias, ele não pode realmente entrar para a KKK. Em seu lugar, envia o agente branco Phillip "Flip" Zimmerman (Adam Driver, indicado a Melhor Ator Coadjuvante). Com lábia, sangue-frio e uma generosa dose de sorte, Ron e Flip abrem portas cada vez mais secretas para o coração sombrio da América.

Apesar de não abrir mão da habitual contundência ao tratar das questões raciais (sendo especialmente tocante a cena em que Ron tem que fingir-se de insensível ao discurso do líder Kwame Ture), Lee esmera-se em expor o ridículo e as limitações cognitivas dos brancos caipiras reacionários. Mesmo quando se revelam especialmente perigosos, eles continuam sendo burros e azarados. Não deixa de ser tristemente notável que as barbaridades que proferem, com absurda naturalidade, continuem sendo reproduzidas até hoje.

É nos paralelos com a realidade atual, sejam sutis (com vários diálogos que apontam o dedo para a administração de Donald Trump) ou diretos (com imagens reais dos tumultos de 2017), que Spike Lee pega nossas mentes de jeito, acordando-nos para o surrealismo de ainda estarmos enfrentando um problema de, no mínimo, 50 anos atrás - com alguns avanços, felizmente, mas ainda com um desnecessariamente alto gasto de suor, saliva e, ocasionalmente, sangue.