Não há como escapar à presença magnética e beleza quase ameaçadora da multitalentosa Michaela Coel: atriz, cantora, roteirista, produtora e diretora, ela está construindo uma reputação de artista engajada e, ainda assim, comprometida com o entretenimento. A série Chewing Gum (2015), da Netflix, baseada em uma peça de sua autoria, rendeu-lhe um BAFTA de melhor atriz de comédia em 2016. Com o acréscimo de cacife, Coel juntou dois gigantes (BBC e HBO) para a produção de I May Destroy You, na qual discute, entre vários temas espinhosos, a questão do sexo sem consentimento.
Escrever a série de 12 episódios foi a forma que Coel encontrou para superar o abuso que ela própria sofreu. A protagonista Arabella (Coel) é uma celebridade de internet e escritora iniciante com severo bloqueio criativo. A cobrança de seus agentes pela conclusão de seu segundo livro é constante, mas, certa noite, ela se permite desligar um pouco e relaxar com amigos. Moderação, porém, nunca foi um ponto forte de Arabella e, no dia seguinte, ela acorda sem lembrar do que aconteceu ou de como chegou em casa. Aos poucos, porém, começa a ter flashes que a fazem crer que foi estuprada.
Além do tema central atual, relevante e incômodo, I May Destroy You resvala em diversos outros pontos sensíveis, mas nada toma muito espaço da constante busca de Arabella pelas memórias que comprovem o que sofreu e permitam a condenação do(s) culpado(s). O processo é doloroso e confuso, e Arabella comete exageros em sua militância, constantemente morde a mão de quem a ajuda (como os dois melhores amigos, a aspirante a atriz Terry e o personal trainer Kwame) e simplesmente não consegue evitar de meter os pés pelas mãos, seja em questões profissionais ou pessoais.
Felizmente, tudo pelo que o ótimo trio central de personagens passa lhes garante pequenas e grandes transformações, mas sem aquela epifania "mágica" que, por vezes, tira a credibilidade das jornadas de redenção em tantos filmes e séries. Sendo este um relato semiautobiográfico, as situações são bastante críveis, não há uma linha de diálogo desperdiçada, e não há sequer um coadjuvante que entre ou saia de cena sem uma participação relevante.
Os mais pudicos, acostumados ao soft porn e às ilusões românticas das produções americanas, podem sentir-se ultrajados pela crueza e naturalidade com que Coel retrata a nudez e a sexualidade. Ficar tão à vontade para mostrar e mostrar-se chega a ser uma espetacular ironia, considerando que estamos falando da produção audiovisual de um país (a Inglaterra) cujo moralismo conservador atravessou séculos e se manifestava cruelmente até poucas décadas atrás.
E, como dito lá no começo, é simplesmente espetacular como Michaela Coel consegue chocar, conscientizar, assustar e, ainda assim, divertir-nos tanto com I May Destroy You. São 12 episódios que reafirmam nossa crescente fé no entretenimento com conteúdo - você reparou como 2020 foi um ano absurdamente bom para a dramaturgia televisiva? - e nos ajudam a ignorar a solene e completa esnobada que a série sofreu no recém-anunciado Globo de Ouro. Azar dele.