15.11.20

Morto Não Fala


Imagine que seu trabalho é conviver com a morte. É assim que Stênio passa suas noites: recebendo, abrindo e preparando cadáveres no IML de São Paulo. Pobre, casado e com dois filhos, Stênio leva uma vida nada invejável, mas, sem qualquer explicação, desenvolveu a capacidade de falar com os mortos. Enquanto os prepara para congelar ou embalsamar, Stênio ouve as cabeludas confissões dos defuntos e guarda para si aqueles assuntos (quem iria acreditar, afinal?), até o dia em que a história de um traficante de seu bairro o envolve diretamente.

Morto Não Fala é uma tremenda realização de Dennison Ramalho, roteirista da série Supermax e de alguns episódios de Carcereiros, da Globo. Co-escreveu, ainda, o roteiro de Encarnação do Demônio (2008), último filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Este é seu primeiro longa-metragem.


Com seu ato impensado, Stênio (Daniel de Oliveira, em ótima atuação) se vê "marcado", atraindo perigo fatal para si e para os seus. Os filhos o entendem e respeitam cada vez menos. Quando o casamento ruim com Odete (Fabíula Nascimento) deixa de ser um problema, a espiral descendente de Stênio, posta em andamento por ele próprio, ganha contornos sobrenaturais típicos produções do gênero. Apesar da estética suburbana, a direção segura de Ramalho entrega uma obra que rivaliza em qualidade com boas produções estrangeiras.

O roteiro, do próprio diretor, tem ótimas sacadas, tecendo surpreendentes reviravoltas para quebrar nossas expectativas, seja quando esperamos um jump scare à moda americana, seja quando achamos que a história não tem mais para onde ir. É claro que os jump scares estão lá (alguns, como a cena do forno, de gelar o sangue), ou isso não seria um terror sobrenatural.


O aspecto gore é bastante convincente, um triunfo do filme. Em vez de aplicar maquiagem aos atores "mortos", porém, Ramalho optou por refazer suas feições em CGI - por incrível que pareça, uma decisão em prol do realismo, já que muitos deles estão conversando enquanto Stênio revira suas entranhas - e o efeito, embora geralmente satisfatório, deixa a desejar em alguns momentos.

Com orçamento generoso (3,3 milhões) para uma produção brasileira de nicho, de um diretor "estreante" (aspas necessárias, pois Dennison Ramalho já havia dirigido alguns curtas, como Amor Só de Mãe), Morto Não Fala prova que o investimento cultural, tão dilapidado e criticado nos últimos anos, pode se justificar e compensar grandemente.

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MORTO NÃO FALA (2019)
Com Daniel de Oliveira, Fabíula Nascimento, Bianca Comparato
Direção: Dennison Ramalho

8.11.20

Os Novos Mutantes


Talvez a produção mais zicada da história recente de Hollywood, Os Novos Mutantes sequer tem a desculpa da pandemia de coronavírus para culpar por seu insucesso: mesmo antes de os cinemas fecharem as portas, o filme foi pego no fogo cruzado da compra da Fox pela Disney e correu o risco de jamais ver a luz do dia. O primeiro trailer (de inacreditáveis TRÊS anos atrás!) fazia parecer que veríamos um filme de horror sobrenatural, em vez de uma aventura de super-heróis. Contrariava as expectativas, mas deixou os espectadores curiosos.

Por muito tempo, a Disney não sabia o que fazer com o filme - se insistia em lançar nos cinemas, lançava direto no Disney+, ou jogava tudo no lixo. Quando o martelo foi batido em favor da exibição em tela grande, chegou a pandemia e jogou água no chopp do Mickey. A fé da Disney no potencial de bilheteria do filme (fé que ela negou ao live action de Mulan, por exemplo, que foi direto pro streaming) dava pistas de que talvez ele fosse bem bom, afinal. O último da quase interminável sequência de adiamentos foi para 28 de agosto passado. Aí, Os Novos Mutantes chegou ao cinema e...

É um trabalho ingrato, o de chutar cachorro morto, mas a gente deveria ter desconfiado. Não me entenda mal, eu não sou alguém que está sempre com a régua de expectativas baixa por medo da decepção - e olha que faz pouco mais de um ano que eu assisti àquela atrocidade chamada X-Men: Fênix Negra. O benefício da dúvida é algo que eu distribuo sem muita exigência. O primeiro clip extraído do filme, aquele com os minutos iniciais, em que a aldeia de Danielle Moonstar é atacada pelo Urso Demônio, mantinha acesa minha esperança de uma diversão passável, no mínimo.

O filme, porém, foi massacrado pela crítica, e o público americano que se aventurou a vê-lo não bastou para cobrir o modesto orçamento, que oscilou entre 67 e 80 milhões de dólares. O baixo custo provavelmente explica a qualidade capenga dos efeitos especiais - em diversos momentos, a gente parece estar vendo um filme do começo dos anos 2000, daqueles fuleiros.


Os aspectos técnicos nem incomodariam tanto, se houvesse uma boa história sendo conduzida pelo diretor Josh Boone (que co-escreveu a história com Knate Lee, seja quem for essa pessoa). A trama é um amontoado de clichês, como a severa porém bem-intencionada doutora Cecília Reyes, que comanda sozinha um hospital que mais parece uma prisão, onde os cinco jovens mutantes Illyana Rasputin (nas HQs, Magia), Sam Guthrie (Míssil), Roberto da Costa (Mancha Solar), Rahne Sinclair (Lupina) e a já citada Danielle Moonstar (Miragem) vivem isolados do mundo exterior.

Não vou nem entrar no mérito de por que uma teleportadora interdimensional, como Magia (retratada como uma rebelde incorrigível), simplesmente não se manda dali e aceita que "é pro seu bem". Ou por que uma estrutura daquele tamanho tem apenas cinco pacientes e uma médica. Se for pra gastar tempo até pintarem umas cenas de ação decentes ou um drama que valha a pena acompanhar, a gente compra ideias ainda piores, numa boa.

Mas a coisa mais próxima de uma história humana genuína que a gente vê é o interesse de Rahne por Dani, mas mesmo isso é desenvolvido de maneira pobre. Os traumas dos demais ganham lampejos que deveriam ser aterrorizantes, mas só provocam bocejos, demérito da absoluta ruindade dos diálogos e da inabilidade do diretor.

Os atores fazem o que podem com seus personagens, mesmo tão desvirtuados e com tão pouco desenvolvimento. Dá para cravar Anya Taylor-Joy e Maisie Williams como destaques, mas todo mundo está OK e nada mais, e tudo que havia para ser dito sobre o white-washing envolvendo os brasileiros Alice BragaHenry Zaga já foi dito por gente mais entendida que eu. A identidade do chefe de Cecília Reyes é uma boa sacada, mas o roteiro não sabe o que fazer com isso, ou com os assassinos sem rosto que perseguem Magia, ou com qualquer outro suposto "mistério" que levanta.

"Mas, afinal, tem uma luta com o Urso?"

Tem, sim, mas é neste momento que a tosqueira atinge níveis abissais, com ação confusa e soluções dramáticas vergonhosas, lembrando X-Men: Fênix Negra, dirigido por Simon Kinberg, que (veja só!) produziu Os Novos Mutantes. Percebe um padrão sendo formado aqui?

Ainda bem que não paguei pra ver isso no cinema. Obrigado, coronavírus!

2.11.20

O Gambito da Rainha


Embora pareça uma daquelas histórias verídicas e edificantes sobre superação, O Gambito da Rainha revela-se uma surpresa muito acima da média - ainda mais considerando-se o padrão Netflix de obras fechadas, cujos finais costumam parecer apressados ou cansados.

Em seus sete magistrais episódios, a minissérie conta a história de Elizabeth Harmon (na fase adolescente e adulta, Anya Taylor-Joy, em grande atuação), que, após a morte da mãe em um acidente, é enviada a um orfanato cristão para garotas. Lá, além de ganhar a simpatia e a amizade da voluntariosa Jolene (Moses Ingram), ela conhece o Sr. Shaibel (Bill Camp), o recluso zelador do local, que passa os dias jogando xadrez sozinho no porão. Desde sempre afeita à matemática e à lógica, a garota consegue convencê-lo a ser seu professor de xadrez - e que aluna a pequena Beth vai se revelar...

Junto com as primeiras vitórias em pequenos torneios locais, vem a chance de adoção. O casal Allston (Patrick Kennedy) e Alma Wheatley (Marielle Heller) levam a garota para viver no centro de Lexington, Kentucky. Beth logo percebe, porém, que as coisas não vão muito bem no lar dos Wheatley. Quando se vê sozinha com a mãe deprimida e alcoólatra, Beth teme que a tragédia que vitimou sua mãe biológica se repita.


Entretanto, se há algo que se pode elogiar em O Gambito da Rainha, é sua constante disposição de contrariar nossas expectativas, sejam aquelas criadas pelas convenções vistas em filmes e séries do gênero, sejam aquelas advindas de nossas próprias convicções. O roteiro (dividido entre o diretor Scott Frank, o co-roteirista Allan Scott e o autor do romance homônimo de 1983 em que se baseia, Walter Tevis) privilegia escolhas pouco convencionais, o que casa perfeitamente com a imprevisibilidade de Beth Taylor, que vai de um orfanato no interior ao topo do mundo, em pouco menos de duas décadas.

Em sua vertiginosa jornada, Beth enfrenta campeões municipais e estaduais, até chegar, ainda muito jovem, à elite do xadrez. O sucesso no mais cerebral dos esportes lhe traz fama e fortuna, mas, previsivelmente, também, a autodestruição que desde sempre se avizinhava. Ainda jovem, Beth se vicia em tranquilizantes e, conforme cresce, vai experimentando outras viagens - porque ela acredita que joga melhor assim.

O ciclo de ascensão, queda e volta por cima de Beth é melhor percebido em suas más escolhas pessoais. Pela ajuda prestada pelos adversários/amigos/amantes Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster) e Harry Beltik (Harry Melling), por exemplo, ela paga com ingratidão e arrogância. Quando o álcool causa seu primeiro grande vexame e frustração, Beth abre a tampa do alçapão no fundo do poço. Mesmo sabendo que ela vai sair de lá, a gente não deixa de sentir certa apreensão. É uma personagem tão marcante e bem-desenvolvida que não tem como não torcer por ela.


A edição faz xadrez parecer a coisa mais emocionante que existe, e a tensão de algumas importantes partidas deixa a gente roendo as unhas! Apesar do tom abertamente feminista da série, ela não demoniza os homens ao redor de Beth (com uma exceção apenas), que parecem sempre igualmente muito dispostos a ensinar e aprender com ela. Quando chega o torneio em Moscou, por exemplo, parece mais um campeonato de boas maneiras do que um evento esportivo. Vale citar o esmero da produção na reconstituição de época, das roupas aos carros e cenários.

Se você chegou até aqui, devo pedir desculpas, porque saber qualquer coisa  sobre O Gambito da Rainha tira um pouco de sua graça. Não era possível para mim, porém, ignorar o impacto positivo dessa ótima série. Era preciso escrever sobre ela e recomendá-la. Seja pelas nuances dos personagens, as ótimas atuações ou as interessantes viradas do roteiro, não faltam méritos. Um triunfo imenso entre as produções próprias da Netflix.

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O GAMBITO DA RAINHA (The Queen's Gambit)
Netflix, 2020